O Mistério da Foto da Capelinha de S. José – 2

O céu ao fundo entre as árvores está reduzido a uma ausência de cor devido ao monocromatismo esquálido da fotografia. Envolvendo a capela, algumas oliveiras evitam que a fotografia pareça despida. Os ramos pararam para sempre, alheios à aragem da tarde de Verão. Sim, é de tarde porque as sombras projectam-se para nascente, e é Verão porque o meu avô está de camisa de manga arregaçada. Os ramos pararam para toda a eternidade quando o clique da máquina se fez ouvir. Não é um clique. É o som que fazia a cortina, o obturador e o diafragma da máquina, em acorde; antes de ser substituído pelo estalido insípido das máquinas digitais. Aquele ruído que fazia com que as pessoas se descontraíssem da pose forçada que mantiveram durante os últimos preparativos do fotógrafo. Mas não se descontraem logo, respiram fundo primeiro, olham umas para as outras e depois é que mudam de posição, como se não fosse permitido ficarem como estavam depois da foto tirada. De seguida as conversas interrompidas continuam pouco a pouco a reformularem-se.

O fotógrafo é amador; um fotógrafo profissional fotografaria o grupo mais de perto, para se conhecerem melhor as pessoas, ou de mais longe para não cortar o pináculo da capela que tem uma estranha forma de flecha com uma cruz em cima.

O fotógrafo é seguramente o meu tio brasileiro, porque só ele reuniria parentes afastados para uma fotografia; para levar como recordação quando voltar ao Brasil.

O fotógrafo afasta-se um pouco para a direita, muito pouco, só o suficiente para não cair num buraco que está no chão. Atrás do buraco está uma enorme pedra com cerca de meio metro de altura, de forma vagamente paralelepipédica. Isto não aparece na fotografia; nem nesta nem em nenhuma outra que eu tenha visto; de certo, devido a os fotógrafos verem naquele conjunto um baixo valor estético, e uma falta de bom senso o manter-se assim uma pedra daquele tamanho com um buraco à frente durante todo o verão, mesmo em frente da capelinha de S. José.

É a pedra da sesta. Só será enterrada no dia da festa do Crasto, a oito de Setembro, para que termine o direito dos jornaleiros descansarem depois de almoço, ou melhor, depois de jantar, como se chamava à segunda refeição do dia em Aguim, que a bucha é parca mas comida com orgulho, e as palavras, se não alteram a essência das coisas, podem até fazer-nos crer que chega para empanturrar o estômago, aquilo que na realidade não enche a cova de um dente. O almoço é de manhã, com o resto da ceia da véspera, e por isso não lhe chamam pequeno, que a enxada é pesada e não se mexe sozinha.

O enterramento da pedra é um acto pouco festivo, ou nada; nessa altura a festa é em Anadia. Aqui parece mais um funeral; ou não se tratasse de oficializar a perda da sesta como um direito laboral. No dia de S. José, a 19 de Março, é uma festa dentro de outra festa. Os jazes, como começam a ser chamados os pequenos grupos musicais em que os metais vêem substituindo os acordeões e os instrumentos de corda, ficam a tocar sozinhos ao despique, nos coretos do Largo do Sobreirinho, e as pessoas vêem juntar-se em torno da entrada da capelinha para assistir a uma outra competição: uma parelha de cavadores tenta superar em rapidez os que no ano anterior desenterraram a pedra da sesta. Depois fica ali a pedra e o buraco a desafiar o bom gosto de quem alia as tradições populares à falta de desenvolvimento.

Muitos séculos depois de os Celtas nos terem deixado o seu culto da pedra, como um legado para sempre perdido, ele chega a Aguim nesta reminiscência importada da vizinha povoação abandonada de Vila Franca, há décadas atrás, acompanhando a imagem do S. José, para a qual construíram esta capelinha, à frente da qual, agora, os meus antepassados me olham através dos tempos.

Então um dia, há-de vir finalmente alguém, com a arrogância dos ignorantes e a prepotência dos espíritos pragmáticos, reduzir a brita, e sepultar debaixo de uma camada de alcatrão, definitiva e ingloriamente, esta tradição única da Pedra da Sesta.

… a CONTINUAR

Publicado por

Manuel Bastos

Um comentário a “O Mistério da Foto da Capelinha de S. José – 2

  1. “O almoço é de manhã, com o resto da ceia da véspera, e por isso não lhe chamam pequeno, que a enxada é pesada e não se mexe sozinha.” – É, provavelmente, o mais belo conjunto de palavras que pude ler…

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