(1756 – 1828), Organeiro
Por Nuno Rosmaninho, in Aqua Nativa n.º 6, Julho de 1994
António Xavier Machado e Cerveira [1] é para os aguinenses de hoje, e não só, uma figura esquecida. Embora José Rodrigues Pereira Rosmaninho lhe tenha dedicado uma breve referência [2], a sua memória encontra-se muito desvanecida nos seus conterrâneos, mas não entre os estudiosos de órgãos. Devo ao Exmo. Senhor Rogério de Oliveira Gonçalves, estudioso da história local de Paço de Arcos [3], o ter-me salientado, no Verão de 1993, a importância de Machado e Cerveira como construtor de órgãos. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira considera-o «o mais notável fabricante de órgãos português e o que mais trabalho produziu» [4].
«Essenciais à grandiosidade e pompa do barroco», os órgãos conheceram uma intensa divulgação durante o século XVIII. «Com a sua sonoridade rica e variada, conferiam grande esplendor às cerimónias litúrgicas. Pelas luxuosas caixas de talha dourada, acharoada ou marmoreada, davam magnificência aos interiores.» Na sua construção intervêm o organeiro e o entalhador. «Ao primeiro competia a concepção geral do instrumento, embora por vezes se encarregasse também da caixa.» [5]
O ocaso da música para órgão, fenómeno correlativo do declínio da cultura barroca, provocou a degradação de muitos destes instrumentos e o esquecimento dos seus fabricantes. Assim se compreende que, fora dos especialistas, na povoação que o viu nascer, o nome de António Xavier Machado e Cerveira seja quase absolutamente desconhecido. As referências que lhe são feitas relevam por vezes menos dos seus merecimentos próprios como construtor de órgãos do que da circunstância de ter sido meio-irmão de Machado de Castro, escultor fundamental no panorama artístico português do século XVIII.
Machado e Cerveira aprendeu a arte de organeiro com seu pai, Manuel Machado Teixeira (também conhecido por Manuel Machado Teixeira de Miranda), natural de Braga [6]. Desconhece-se porém onde é que, por sua vez, este efectuou a sua aprendizagem. Wesley Jordan lamenta o desaparecimento de documentos, livros, contratos e padrões para a manufactura de tubos de Machado e Cerveira. «É provável que alguém tão metódico como Cerveira tenha documentado todos os aspectos dos seus trabalhos.» [7]
Machado e Cerveira nasceu em Aguim, no dia 1 de Setembro de 1756, filho de Manuel Machado Teixeira e de Josefa Luísa Cerveira, de Aguim. Casou com Maria Isabel da Fonseca Cerveira em data que desconhecemos e exerceu a sua actividade em Lisboa. Nos últimos anos da sua vida tinha «oficina e moradia numa das propriedades da Casa de Bragança» na Rua do Tesouro Velho (em princípio deste século já conhecida por Rua António Maria Cardoso), que Ernesto Vieira crê ser «a mesma que ocupara o seu irmão Machado de Castro» [8].
«O primeiro órgão completo que Machado e Cerveira construiu e hoje [1900] existe em bom estado, é o da igreja dos Mártires. Tem na inscrição a data de 1785 e o número 3 indicando os instrumentos construídos pelo autor até essa data.» [9] Até ao ano da sua morte, em 1828, construiu mais cem, o que revela um labor incansável. Fez para a igreja do Barreiro um órgão com aquela data e o número 103. [10]
A qualidade do seu trabalho, revelada ao que parece desde o primeiro momento, abriu-lhe caminho à construção de «quase todos os órgãos que as igrejas de Lisboa, reedificadas depois do terramoto [de 1755], tiveram de adquirir» [11]. Executou órgãos para as basílicas de Mafra, da Estrela; para as igrejas de Nossa Senhora da Pena, de Nossa Senhora da Encarnação, de S. Roque, do convento de Odivelas, de Santa Isabel, de Nossa Senhora da Ajuda, de Nossa Senhora dos Anjos, de Santiago, de S. Lourenço; para a capela do actual Palácio Nacional de Queluz; etc. Fora de Lisboa, construiu, entre outros, «os órgãos das igrejas paroquiais do Barreiro e Lavradio (diocese de Setúbal), Coruche e Marvila (diocese de Santarém)» [12]. Enviou também alguns órgãos para o Brasil.
«Por motivo de ter construído os órgãos de Mafra e Queluz, foi nomeado organeiro da casa real – Organorum regalium Rector, como ele mesmo se intitulava – e condecorado com o hábito de Cristo. (…) Machado e Cerveira entrou para a irmandade de Santa Cecília em 22 de Novembro de 1808, sendo muito considerado nesta corporação. Exerceu com a maior pontualidade e zelo, durante os últimos anos e até poucos meses antes de falecer, o cargo de primeiro assistente, presidindo a todas as sessões da mesa. (…) Morreu em Caxias, para onde tinha ido já muito doente, em 14 de Setembro de 1828, contados 72 anos de idade; foi sepultado nos covais dos Jerónimos. A oficina de Machado e Cerveira continuou ainda a funcionar, dirigida pelo seu ajudante e discípulo José Teodoro Correia de Andrade, sendo proprietária a viúva D. Maria Isabel da Fonseca Cerveira. Extinguiu-se porém pouco tempo depois sem ter produzido mais trabalho algum importante.» [13]
Sobre as qualidades musicais e o trabalho em madeira dos órgãos de Machado e Cerveira, comentou Ernesto Vieira em 1900:
«Os maiores órgãos de Machado, com excepção dos dois que estão nos Jerónimos, não têm uma fábrica muito grande; podem até considerar-se pequenos comparados com os instrumentos monumentais que existem espalhados pela Europa e em Lisboa mesmo, antes do terramoto, havia-os muito mais grandiosos. São porém muito bem construídos, com solidez notável, no gosto italiano predominante em toda a península desde os fins do século XVII. (…)
São (…) brilhantes e estridentes nos cheios, mas pouco nutridos nos flautados. Satisfaziam ao gosto vulgar da época que exigia, mesmo na igreja, música alegre e ruidosa. (…)
No que porém os órgãos de Machado são por vezes admiráveis, é na escultura ornamental.
Vê-se bem que conhecia a arte de modelar a madeira, fazendo-o com aprimorado gosto. (…) o que a todos sobreleva no fino acabamento dos pequenos ornatos e emblemas em relevo, é o de Odivelas, actualmente na igreja de S. Julião. Tem este órgão uma cadeira que é também primoroso trabalho de escultura em madeira.» [14]
O estudo aprofundado da biografia de Machado Cerveira não é, hoje, fácil de prosseguir dada a escassez de documentação. Uma das vias de pesquisa é, contudo, a imprensa de Lisboa (e eventualmente de Coimbra) e o espólio da referida irmandade de Santa Cecília, que agrupava compositores e executantes.
Notas
[1] Conquanto seja este o nome com que ocorre nas enciclopédias e com que o Autor assinou por exemplo o órgão da Estrela, datado de 1789, José Rodrigues Pereira Rosmaninho no seu O Couto de Aguim (Anadia, Cisial, 1959, p. 135 chama-lhe apenas «António Xavier Machado». Wesley David Jordan nomeia-o «António Machado Xavier e Cerveira» (Órgãos portugueses. A documentation and historical and technical study of selected portuguese organs, New England, Tese para Doutor em Filosofia na Universidade de New England, Austrália, 1979, p. 529). (voltar)
[2] Ob. cit. Ver toda a p. 135, excertos das pp. 118 e 131-132 e a transcrição do assento de baptismo na p. 229. (voltar)
[3] Rogério de Oliveira Gonçalves, O Palácio dos Arcos. Meio milénio. Oeiras, Edição da Câmara Municipal de Oeiras, 1989. (voltar)
[4] CERVEIRA (António Xavier Machado e), Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, volume VI, p. 528, Lisboa – Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, s.d.. (voltar)
[5] Nelson Correia Borges, «Órgãos», in: José Fernandes Pereira (dir.), Dicionário da Arte Barroca em Portugal, Lisboa, Editorial Presença, 1989, p. 332 (voltar)
[6] «O progenitor dos Machados, também escultor e organeiro de fama, modelava com perfeição, era dotado de um engenho e habilidade enciclopédicos, e foi o primeiro professor dos seus ilustres filhos.» (Joaquim da Silveira, Estudos de Toponímia da Bairrada e outras Notas, Porto e Lisboa, Livraria Figueirinhas, 1993, p. 129; excerto do capítulo «Castilhos da Bairrada», originalmente publicado no Jornal de Anadia entre 2-XI-1912 e 18-I-1913.) (voltar)
[7] Wesley Jordan, ob. cit. p. 529 (voltar)
[8] Esnesto Vieira, Dicionario Biographico de Musicos Portugueses. Historia e bibliografia. II volume. Lisboa, Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900, p. 54. A bibliografia sobre Machado e Cerveira é extremamente diminuta e repetitiva. Os verbetes das diversas enciclopédias limita-se a glosar, sem acrescento, o que Ernesto Vieira escreveu no seu Dicionário. Infelizmente, este autor não cita os documentos que consultou nem a sua proveniência. Novidade existe apenas na obra de Wesley Dadid Jordan, já citada, que dedica o capítulo seis (pp. 529-600) a «The organs of Antonio Machado Xavier e Cerveira», estudando em pormenor sete dos seus órgãos: os da igreja dos Mártires (Lisboa), de Mafra, de Lorvão, de Marvila, da igreja de S. Sebastião (Ponta Delgada) e da igreja de Santa Engrácia (Lisboa) (voltar)
[9] Ernesto Vieira, ob. cit. p. 53. Wesley Jordan, ob. cit., p. 530, considera que não pode haver dúvida quanto à origem dos instrumentos construídos por Machado e Cerveira «por causa da assinatura do construtor, data e número inscrito por cima do teclado, habitualmente numa placa oval feita de prata.» (voltar)
[10] Sobre o estado de conservação dos órgãos de Machado e Cerveira e também da sua importância no contexto da organaria portuguesa, escreveu Wesley Jordan em 1979, na obra citada, p. 529: «Uma pequena percentagem do grande número de órgãos construídos pelo prolífico construtor português, António Machado Xavier e Cerveira, ainda existe e, embora desses instrumentos remanescentes menos de uma dúzia estejam em condições de serem tocados, ou ainda num estado razoável de conservação, são de grande importância para este estudo.» (voltar)
[11] Idem, Ibidem. (voltar)
[12] Ofício da Secretaria geral do Patriarcado de Lisboa, de 12 de Novembro de 1977, dirigido ao «cidadão australiano Dr. Wesley David Jordan, estudante na Universidade da Nova Inglaterra em Armidale, Nova Gales do Sul, onde prepara um doutoramento em Filosofia, na especialidade de História do órgão», que se dirigiu «por escrito a este Patriarcado, anunciando a sua visita a Portugal no Mês de Outubro de 1977 e pedindo indicações sobre órgão antigos portugueses, particularmente os fabricados por Machado e Cerveira». (voltar)
[13] Ernesto Vieira, ob. cit., p. 54 (voltar)
[14] Idem, p. 55. (voltar)