Fazer uma resenha histórica da sua própria terra é tarefa algo espinhosa é todo um conjunto de paixões, mitos, recordações. É tradições que acabam por ofuscar ou desviar a razão deixando falar o coração. Quando este fala a objectividade fica sempre a perder. Devo afirmar que fiz algum esforço para que tal não sucedesse mas confesso que aqui e ali não consegui calar as minhas emoções. Fique o leitor atento e separe com a sua razão o trigo do joio.
Além disto, tenho que admitir que não consegui fazer a investigação que desejava.
Por isso, recorri à documentação já compilada pelo ilustre aguinense Dr. José Rodrigues. O seu livro, “O Couto de Aguim”, fornece uma abundante documentação relativa às freguesias de Aguim e Tamengos que ainda hoje não foi superada. Limitei-me por isso a interpretá-la segundo novas luzes e a complementá-la com mais alguns documentos entretanto publicados. Foi com esta documentação que procurei dar uma imagem de Aguim desde as suas origens até ao século XIX. Quanto ao século XX, falta ainda um trabalho de compilação e crítica documental pelo que é preferível não ser tratado ainda.
Origens
Aguim. Palavra estranha, dirão alguns. Reflectindo um pouco somos forçados a concordar mas, logo rebatemos que não é a única, que existem muitos mais topónimos por esse Portugal fora igualmente estranhos. Exemplos!… É só palmilhar o país com atenção às placas toponímicas para que logo surjam mais casos.
Com o estudo sobre as origens do topónimo Aguim facilmente encontramos a razão para a sua existência. O étimo, ou seja a palavra-base, é “Aqulini” [1], mais propriamente “villa Aquilini”, ou seja, traduzindo, “a quinta do Aquilino”. Assim sendo as origens etimológicas da palavra Aguim vem intimamente ligada às origens da povoação na medida em que ambas resultam da ocupação romana (séculos I a V d.c.) destas paragens. Desses tempos poucos foram os vestígios de que sobrou notícia. Conhecidos, somente os vestígios de umas sepulturas de tijolo encontradas nos “Chães de São Miguel” [2] e, eventualmente, um ou outro pequeno vestígio cerâmico ou metálico [3].
Se foi com os Romanos que tudo começou não foi, seguramente, com o fim do seu domínio que a povoação desapareceu. Contudo, as notícias referentes a Aguim só voltam a surgir já em plena Idade Média, no momento de ocupação e organização do território conquistado aos Muçulmanos. Longo foi o período de esquecimento marcado pelas invasões Bárbaras, a formação dos reinos suevo e visigótico, a invasão Muçulmana e os avanços e recuos da Reconquista cristã. A tudo deve ter resistido o foco populacional erigido em redor da “villa” do romano Aquilino pois, parece difícil, a extinção da povoação e posterior refundação. O próprio nome da povoação mantem a sua ligação às origens romanas.
A primeira notícia é a que surge em 1101 numa carta de venda de metade de Morogos que pertencia a Elduara e seus filhos que a venderam a Gonçalo Bermudes e a sua mulher Maria Daviz. Neste documento, Aguim surge como uma das confrontrações [4]. Teria então o nome de Aquilin numa patente ligação às suas origens romanas. Com o passar do tempo a palavra vai degenerando até chegar ao actual topónimo. De Aquilini a Aquilin > Aguilin > Aguiin > Aguiim > Aguim [5].
Aguim medieval e moderna
Depois de ter analisado a questão das origens da povoação e topónimo, passaremos a estudar brevemente a Aguim dos tempos medievais e modernos, ou seja entre os séculos XI e XVIII. Durante estes séculos as informações referem-se essencialmente ao Couto de Aguim que englobava as actuais freguesias recentemente divididas.
O couto de Aguim foi instituído a favor da Sé de Coimbra por D. Afonso Henriques em Julho de 1140. Tal concessão terá sido uma forma de retribuição pela dádiva de 60 morabitinos de ouro que a citada Sé fornecera a D. Afonso Henriques [6]. Desta maneira, o primeiro rei português veio a confirmar a doação de D. Raimundo e D. Urraca, em 1094, do mosteiro da Vacariça e seus bens [7] à Sé coimbra [8]. Agora com a doação do couto, D. Afonso Henriques está a demarcar o espaço privilegiado concedendo os direitos régios à Sé de Coimbra. É a ela que vai passar a caber as responsabilidades de administrar, aplicar a justiça (com algumas excepções) e cobrar os impostos.
É à Sé que cabe organizar a vida económica, organizar a cobrança dos impostos, definir os impostos, os seus montantes, e o transporte dos mesmos, etc., tudo isto são aspectos que interessam a ambas as partes, senhores e servos. O floral primitivo de Aguim não chegou ao contrato oral preservado e regulado pelo costume e tradição oral [9].
Houve, isso poderemos garantir, um acordo entre ambas as partes que regulariam os supra citados aspectos. A melhor prova dessa existência vem de um documento erradamente mencionado como Foral Velho de Aguim [10]. Esse documento não é mais do que a resolução de um conflito entre o deão e o cabido e os moradores do couto de Aguim, Horta, Tamengos e Mata sobre a cobrança da eirádega [11] e o transporte dos impostos. Será somente em 1514 que D. Manuel concede o Foral Novo de Aguim [12] que tem como base esse acordo a que agrega, para os restantes assuntos, partes dos forais de Miranda, Puços e Coimbra.
Intimamente unida à questão dos forais anda associada a questão da identificação e organização das estruturas do poder local. Pelo pseudo-foral velho de Aguim ficamos com a impressão que seria vital a existência de alguém responsável pela organização e colecta de todos os impostos, bem como a realização das restantes tarefas administrativas e judiciais. O responsável por isso seria um representante do senhor, talvez numa primeira fase nomeado por ele mas, com o passar do tempo, deverá ter sido eleito pelos moradores que, por sua vez, o apresentavam ao senhor para posterior confirmação. É esta última forma que vem consignada no foral manuelino onde se faz menção à existência de pelo menos um oficial de importância vital – o escrivão da câmara [13]. Se existe escrivão da câmara é porque já existiria um organismo de governo local com todos os seus oficiais – juiz, vereadores e escrivães, bem como, um colégio eleitoral composto por homens-bons [14]. A altura em que estes organismos se formaram escapa-se-nos completamente, mas a verdade é que a união dos moradores do couto na defesa dos seus privilégios era a melhor arma de que podiam dispor. Esta acabava por não causar grandes incómodos ao senhor desde que os impostos fossem pagos sem contestações e novas exigências como de facto parece ter sucedido.
Todavia, a Sé de Coimbra não era a única detentora de terras em Aguim. O convento crúzio [15], detem igualmente alguns bens em Aguim. Adquiriu-os por duas vias: a primeira por dádivas via testamentos e a segunda por compra. Quanto ao primeiro modo há que referir que era bastante frequente as pessoas, quando sentiam a morte aproximar-se ou, quando pretendiam a protecção de um senhor mais poderoso, deixarem em testamento muitos dos seus bens terrenos a instituições religiosas para estas os protegerem tanto na vida terrena como no post-mortem. Relativamente a Aguim temos os casos de Cid Aires e esposa (1133), Goncinha Gonçalves (1138), Gónia Mendez (1140) e Soeiro Mendez (1153) que no conjunto entregaram ao mosteiro crúzio qualquer coisa como quatro herdades que tinham em Aguim [16].
A compra foi outra solução adoptada pelos crúzios para aumentarem o seu património. Dispondo de algum poder económico o referido convento efectuou cinco compra em Aguim, nomeadamente duas metades de casais e três partes de uma herdade. Em troca o convento pagou algumas moedas sonantes (10 morabitinos de ouro), objectos de luxo para uso doméstico (dois tirazes [17]).
Todos estes bens de Santa Cruz vão ingressar em 1545 no património da Universidade de Coimbra. Com a morte do último prior-mór de Santa Cruz, D. Duarte, filho ilegítimo de D. João III, o monarca decidiu anexar os bens deste priorado à Universidade definitivamente instalada em Coimbra desde 1537. Desse modo, Aguim surge no Livro da Fazenda e Rendas da Universidade de Coimbra elaborada em 1570 por Simão de Figueiró [18].
Economia
Mas de que vivia Aguim por estes tempos? Esta é uma questão importante pois a sua resposta fornece a razão da qual pode depender a persistência de uma localidade. Aguim como a esmagadora maioria do país vivia da agricultura. É o cultivo de cereais – trigo, cevada, centeio, milho e aveia -, de produtos hortícolas e a criação de gado – bovino, ovino e caprino – que constitui o seu principal pilar económico. As terras e restantes bens estão divididos em casais
– unidades agrárias e familiares – para permitirem a melhor exploração da terra e respectiva cobrança de impostos. As
hierarquias sociais medem-se de acordo com a riqueza em terras e gado havendo a simples divisão entre lavradores e cabaneiros, ou seja, entre proprietários e jornaleiros. Enfim, a terra com os seus labores e frutos são o cerne de toda a vida aldeã.
Mas, mesmo aqui, há espaço para a pequena produção artesanal. Para além dos indispensáveis moinhos e moleiros que transformam o grão em farinha existia igualmente um pequeno artesanato com alfaiates e sapateiros [19] como testemunha o Livro da Fazenda da Universidade de Coimbra que menciona para Aguim um tal António Fernandes alfaiate e um João Fernandes sapateiro [20]. Ambos não fariam destas actividades o seu único sustento pois trazem emprazadas dois casais da Universidade. Enfim, face à fraqueza do mercado estes artesãos são simultaneamente agricultores.
Agricultura e artesanato, duas actividades produtoras de possiveis excessos comercializáveis. A maioria deles iria certamente para os impostos e para as feiras e mercados mais próximos, contudo, alguns deles, nomeadamente o vinho e cereais seriam comercializados a retalho na pequenas “vendas” que ficavam à beira do caminho [21]. É o que nos diz o citado documento ao referir-se a Antonio Vaz e Diogo Gonçalvez. O primeiro já teria a sua venda próxima do caminho há mais tempo pois já tem o seu foro bem definido, meio alqueire de trigo e uma galinha, enquanto que o segundo construiu o seu estabelecimento comercial há pouco tempo (estamos c. 1570) de modo que ainda lhe falta estipular o foro que deve pagar [22]. Depois disto temos a certeza que os viajantes e viandantes esfomeados e sequiosos já teriam onde saciar-se mediante algumas “moeditas” e isto sem se desviarem do seu caminho nem efectuarem a fatigante subida até à aldeia. Enfim, “nada de novo sob o sol”, de modo que os novos aprenderam com os antigos.
Mas quantos seriam os habitantes destes lugares? Eis uma pergunta deveras difícil. As informações que surgem não são directas no que se refere a estes assuntos. Há que trabalhá-las para se obterem resultados aproximados. Deste modo, em vez de totais populacionais surgem-nos números de fogos, vizinhos e proprietários [23]. De qualquer maneira Aguim teria 53 fogos em 1527 [24], ou seja cerca de 200 pessoas. Em 1758 Aguim com o Peneireiro e Vila Franca tinha 82 fogos [25], cerca de 300 almas que em 1791 andariam por volta das 400 almas para Aguim, 4 pessoas no Peneireiro, 24 em Vila Franca e 56 para Alpalhão [26]. De qualquer forma a população de Aguim seria bastante numerosa para o comum das aldeias.
O século XIX
O dealbar século XIX, com todo o seu cortejo de alterações, veio trazer consigo o fim do couto de Aguim em 1834. A adopção do liberalismo, apesar das resistências e lutas, trouxe consigo o fim da individualidade administrativa que vigorou nestas duas freguesias durante diversos séculos. Extinto o couto, criou-se no mesmo espaço o concelho de Aguim que durou até 1836. Durante este curto espaço temporal salientou-se o dr. Inácio Cabral Arez da Silveira Barros natural do Espinhal de Tamengos que foi primeiro provedor e, posteriormente, juiz do concelho.
Todavia são grandes as dificuldades. A excassez de meios é patente apesar da integração em 1835 do concelho de Ventosa do Bairro no concelho de Aguim [27]. Para solver esta situação e simplificar o mapa administrativo o concelho de Aguim é inserido a 1 de Janeiro de 1837, no recém criado concelho da Mealhada [28]. O couto de Aguim passa agora à freguesia de Tamengos. A divisão de poderes que existira ao longo de séculos entre as duas localidades cessa agora de existir pois a formação da freguesia teve somente em conta o aspecto religioso. Aguim viu-se relegada para segundo plano mas nunca esqueceu o passado.
Em 1853, a freguesia de Tamengos é desanexada do concelho da Mealhada e integrada no concelho de Anadia onde hoje se encontra, bem como a recém criada freguesia de Aguim.
Conclusão
Depois desta pequena viagem pelo tempo creio ter ficado patente a antiguidade desta povoação bem como a de Alpalhão que já aparece mencionada na Idade Média. Parece também clara uma tradição de forte predomínio de Aguim ao longo de todo o tempo de vigência do couto e concelho de Aguim, predomínio esse que só se alterou aquando da criação da freguesia de Tamengos. Creio que nesta visão histórica se poderá encontrar alguma luz na explicação de todo o movimento que levou, após algumas peripécias, à criação da freguesia de Aguim. O passado não é tudo mas sempre ajuda a explicar o presente.
F. Miranda Série, in Aqua Nativa n.º 6, Julho 1994
Notas
[1] Esta palavra vem por sua vez da palavra latina Aquila,ae – àguia, daí a sua representação no emblema heráldico da recente freguesia de Aguim. (voltar)
[2] Repare-se na imediata utilização de vestígios estranhos à memória do povo que associado à sua religiosidade, de imediato baptizou o espaço em questão. (voltar)
[3] Em certa altura, enquanto cavava uma das suas parcas parcelas de terra, o meu pai, deparou com um asse romano, desses que eram utilizados para pequenos pagamentos. (voltar)
[4] “(…) medietate de villa Moroganus qui est inter almahala de rei et Certoma et strema illa villa per illo porto Ventosa et veni usque ad illa strada maurisca et deinde per illo fontano que intra in Certoma ad Oriente villa Aquilin ad occidente villa Ventosa ad Aguilione villa Stamengus ad Affrica villa Canizales (…)” in RODRIGUES, José – O Couto de Aguim. Subsídios para a sua História, Anadia, Cisial, 1959, pp, 21 e 174. (voltar)
[5] VENTURA, Leontina e FARIA, Ana Santiago – Livro Santo de Santa Cruz, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1990, pp. 136-139 e 276 – 279; Revista Biblos, vol. X, 1934, pág. 337; RODRIGUES, José – O
Couto de Aguim, p. 175-177 e 183. (voltar)
[6] “(…) et propterea quia dedistis michi LX morabitinos aureos”, in ibidem, pp. 175-177. (voltar)
[7] Nos bens do referido mosteiro encontrava-se a “villa Tamengos cum sua ecclesia vocabulo Sancti Petri”. Ou seja, para além da aldeia de Tamengos incluia os direitos eclesiásticos (nomeadamente a cobrança dos dizimos e outra banalidades) da freguesia de, ou seja, do Couto de Aguim. Ubidem, pág. 173. (voltar)
[8] Ibidem, pp. 177-180. (voltar)
[9] Tal género de contrato não deveria ser pouco comum pois a escrita é algo de raro nestes periodos assumindo mesmo, um carácter quase sagrado nem que seja pelas constantes invocações do divino ao longo dos documentos. É bastante curioso, aos nossos olhos, encontrar, num qualquer documento que trate dos assuntos profanos (exº. contratos de compra e venda, escambo, etc.) constantes invocações do sagrado que surge como um dos principais, senão o principal, garante da veracidade e executabilidade do referido acto. (voltar)
[10] RODRIGUES, José – O Couto de Aguim, pp. 180-182. (voltar)
[11] A eirádega era uma prestação em foragem de cereais, vinho e linho pago ao senhor. Era comum em bastantes lugares do país sendo cobrado a quando da cobrança de outros foros. SRRÂO, Joel (dir de)- Dicionário de História de Portugal, vol. 2, Porto, Livraria Figueirinhas, 1993, pág. 357. (voltar)
[12] RODRIGUES, José – O Couto de Aguim, pp. 189 – 198. (voltar)
[13] “O escrivão da camara nam pagam pemssam” in, Ibidem, pp. 175-177 (voltar)
[14] Entenda-se, os homens mais abastados. (voltar)
[15] Fundado em 28 de Junho de 1131 (voltar)
[16] Ventura, Leontina – Livro Santo de Santa Cruz, pp. 136-138 (voltar)
[17] Um deles foi avaliado em quatro morabitinos de ouro. Ibidem, pág. 279 (voltar)
[18] FIGUEIRÓ, Simão de – Livro da Fazenda e Rendas da Universidade de Coimbra em 1570, (lido e publicado por António Gomes da Costa Madahil), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1940, pp. 95-100 (voltar)
[19] Uma outra profissão indispensável nos meios rurais seria a de ferreiro que por não aparecer na documentação não será prova absoluta da sua inexistência em Aguim ao longo do período focado. (voltar)
[20] Ibidem, pp. 95-100 (voltar)
[21] Certamente a actual estrada nacional n.º 1 (voltar)
[22] FIGUEIRÓ, Simão de – Livro da fazenda e Rendas da Universidade de Coimbra em 1570, pág. 99. (voltar)
[23] Para podermos converter estas informações em número de pessoas realizou-se a multiplicação por 4 unidades de modo a englobar todos os elementos não incluídos. Em algumas situações tal opção poderá pecar por excesso enquanto que em outras pecará por insuficiência todavia, o resultado obtido não se afastará muito da realidade. (voltar)
[24] RODRIGUES, José – O Couto de Aguim, pág. 46 (voltar)
[25] Ibidem, pág. 63 (voltar)
[26] Ibidem, pp. 72-73 (voltar)
[27] Ibidem, pág. 79 (voltar)
[28] Ibidem, pág. 93 (voltar)