O Verão de São Martinho

Os cachos trincadeira e maria-gomes ao pendurão como úberes atraindo mosquitos e a minha gula. Daqui de cima, do sobrado da minha infância que, quando eu crescer, será o primeiro andar da minha casa, pela porta que dá absurdamente para o telhado do alpendre, vejo lá em baixo um grupo de homens caminhando lentamente. Vêm do cemitério e vão em busca duma adega. Um ou dois malápios para fazer boca, e dois ou três copitos de vinho para molhar a goela. E logo se desfiam as maledicências, que na boca dos homens se disfarçam com um sarcasmo corrosivo e cruel, para não se confundirem com a alcoviteirice feminina, adocicada com meneios traiçoeiros; essa sim, obviamente manhosa e pérfida.

As primeiras chuvas como uma ameaça experimental, a ver se estamos distraídos, retiram, como se quisessem fazer negaças ao inverno, e o sol esperançoso regressa. Os castanheiros da quinta do Sobreirinho de folhas afogueadas de um castanho quase vermelho, e os plátanos a ganharem uma alegria de amarelo dourado nas copas cheias de sol, sobressaindo ao verde, que em vários comprimentos de onda, matizam o arvoredo em pano de fundo.

E aqui no sobrado, os santórios apurando sabores: os cachos ao pendurão, as peras em intumescimentos erógenos de puro açúcar e as bravo-de-esmolfe a perfumarem tudo, até metros e metros em redor.

Existe um encanto de doce decadência, nestes dias soalheiros que antecedem a força do inverno, só comparável à beleza de uma mulher a lutar contra o murchar do viço, uma doçura serôdia de fruta madura, como os santórios no sobrado da minha casa.
E um último alento de energia efémera revigora o ar de calor e luz, num ressuscitar patético de moribundo.
Mas todos acreditamos nisso, porque nos apraz, porque nos convém; porque se não acreditamos nas ilusões, só nos resta a realidade, e a realidade é que o inverno se seguirá à morte inelutável do verão, ainda que ele se levante pelo São Martinho, com a derradeira coragem de um soldado ferido de morte, para nos dar uma falsa esperança de vida.

Publicado por

Manuel Bastos

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