A Doce Estranheza do Regresso a Casa

Quando o táxi passa no Largo da Capela o sino dá as horas. Não sei quantas. As quatro cornetas do relógio eléctrico da torre de Aguim esganiçam-se com as ave-marias e depois berram as horas a que ninguém dá atenção. Acho que as pessoas se habituaram àquele despropósito de decibéis como se habituam a um mau cheiro.

O táxi desce lentamente a rua da Portela com o condutor a esperar pacientemente que as pessoas se afastem. As pessoas em Aguim conversam nas ruas e afastam-se apenas por gentileza quando um carro quer passar, o que parece ser entendido pelo taxista que não dá sinais de indignação ou sequer de impaciência.

Agora me lembro que o taxista me fez uma pergunta há imenso tempo, e respondo meio distraído:

– Sim, isto foi na guerra.
– Foi na Guiné?

É difícil imaginar agora que as pessoas hão-de desaparecer das ruas, que um dia a urbanidade há-de contaminar esta povoação como uma virose e destruir completamente a sua pitoresca ruralidade, e então, por não terem nada que fazer nos campos as pessoas hão-de sair das suas casas para os empregos o mais rapidamente possível, deixando as ruas vazias.

É sempre difícil imaginar que uma coisa a que nos habituámos e que criou a identidade de algo que nos era familiar, há-de desaparecer para sempre, para dar lugar a uma outra coisa no mesmo sítio, não porque seja melhor, não porque constitua uma evolução, mas apenas e tão só porque tudo neste mundo parece estar condenado a cumprir a regra mais inútil e estúpida de toda a criação: tudo tem fim.

Mas agora e aqui, está tudo na mesma, e é isso justamente que me surpreende. O mesmo ritmo, a mesma respiração, a mesma atmosfera, a mesma vida; como se eu não tivesse saído daqui há mais do que meia hora.

Cheguei a casa.

Parece que deixei o filme da “Aldeia da Roupa Branca” a meio, que depois assisti à pior parte do “Dia mais Longo”, mas que entretanto regressei.

Tudo na mesma em Aguim, e eu muito mais velho. Segundo a teoria da relatividade, deveria ser o contrário.

Deixei o taxista de novo sem resposta…

– Não foi na Guiné, foi em Moçambique.
– Aquilo lá está mau…

A luz sólida traz-me à memória, por contraste, a luz fluida de África; os objectos aqui mais tangíveis, quase ferindo os olhos, como coisas inorgânicas, áridas, quase feitas só de luz, sem a humidade omnipresente da selva que dá a todas as coisas uma viscosidade animal.

Dá-me a ideia que ainda não penetrei totalmente neste mundo, que ainda não me é possível perceber todos os pormenores, o próprio som no exterior do táxi tem dissonâncias estranhas, como se as vozes das pessoas por quem passamos fossem declamadas com o tom mal colocado, e os ruídos que me chegam aos ouvidos tivessem uma estranheza, um desconserto, a fazerem lembrar uma filarmónica a afinar os instrumentos antes do espectáculo.
Parece que estou num plateau durante a rodagem de um filme sem pertencer ao elenco. O táxi penetra no cenário num travelling lento, e os figurantes ignoram-no. Ou antes, passam eles por nós, desfilando de um lado e do outro.

– Aquilo lá está mesmo mau.
– Mas pra si acabou.

Olho a toda a volta tentando prestar atenção a tudo o que me vai envolvendo, tentando apreender os pormenores. As pessoas rindo despreocupadas. Duas mulheres falando em voz alta a uma distância de mais de vinte metros, sem esperar que se aproximem uma da outra, e continuando a falar alto mesmo quando já estão frente a frente. Um gato sobre um muro. Um cão passando por baixo e o gato enfolando à sua passagem, para esvaziar depois lentamente, à medida que o cão se afasta. No Sobreirinho um carro de bois faz com que o taxista pare o táxi. Uma junta de bois babando-se de dolência e extenuação, arrastando uma enorme carrada de estrume. Os bois, à vez, vão largando sobre o alcatrão do Largo do Sobreirinho, à medida que passam por nós, tartes frescas e fumegantes de bosta. O taxista abre o vidro como se se tivesse sentido convidado para fruir o aroma daquele festim escatológico. Eu também abro o meu e sinto o cheiro quente do estrume e depois o aroma fresco da bosta. De janelas abertas, o som do exterior aumenta e torna-se mais natural como se tivéssemos ambos regulado o equalizador de uma aparelhagem sonora.

O carro de bois segue pela rua da Lomba e o táxi faz os últimos 100 metros atrás dele ao ralenti.

– É verdade… Para mim acabou.
– Você tem saudades disto, não tem?

Algo muda em mim repentinamente. Como quando temos uma dúvida e de repente se nos faz luz; como quando estamos dolentes com a preguiça matinal, sem vontade de abrirmos os olhos, e de repente sentimos a lucidez da vigília; como quando estamos distraídos no meio de uma multidão de estranhos e de repente um rosto familiar sorri para nós. Realizou-se tudo em meu redor como se eu tivesse acordado.

Cheguei a casa.

Parece impossível, agora, que tenha deixado para trás tanta terra, tanto mar, tanta gente, tanta ansiedade, tanta dor. Parece que atravessei um túnel imenso e que acabei agora de sair para a luz do dia. Um passado de que já não faço parte. Uma história que não quer ser contada, uma história que já não sinto a menor vontade de contar.

– Tenho. Tenho mesmo saudades disto…

Cheguei a casa.

A 50 metros à minha frente, a minha mãe e a Ti Maria do Zé Sécio conversam ao sol.

Publicado por

Manuel Bastos