As Quatro Estações em Aguim – 2

 A Alquimia do Outono

Recordo esse tempo como quem olha para uma foto antiga que achou num baú velho. Aquele ali sou eu, dizemos incrédulos por também termos sido crianças. Então temos a tendência irritante de dizer que fomos felizes nessa altura como nunca, desvalorizando tudo o que de bom aconteceu entretanto. Algumas pessoas, como se vê, chegam mesmo a escrever coisas sobre este assunto, como refúgio para as frustrações da idade adulta.

Mas devo ter sido feliz, porque me lembro de estar deitado no chão a sentir o calor que parecia vir do próprio coração da Terra, e o cheiro da erva fresca acabada de pisar, e todo o azul que se pode imaginar, lá em cima; não como se tudo me pertencesse, mas como se eu pertencesse a tudo. E a voz da senhora do Porto a inventar histórias ali ao lado.

A senhora do Porto era uma velha, porque tinha mais de trinta anos, e era estrangeira porque tinha uma acentuada pronúncia do Norte; mas tinha o dom hipnótico de reunir à sua volta um bando de putos que quando não jogavam à bola no Largo do Sobreirinho, todos contra todos para uma baliza só, entretinham-se a pôr em prática uma vertente extremista e ultra-radical do darwinismo, que consistia em matar cobras no Monte Grande, em pôr sapos a fumar com cigarros de barba de milho até estourarem, ou, quando tomavam banho na Lagoa do Olho, a fazer concursos de matar rãs à pedrada.

Devo ter sido mesmo feliz porque só me recordo de uma coisa que me ensombrou a infância, algo verdadeiramente incapacitante: não ser capaz de caminhar descalço.

Olh’ó estapôr do cachopo que parece que vai todo engalicado. Pro qu’é que não calça o raça dos sapatos?

Aquele ali sou eu, a treinar a andar descalço pela estrada de Vale de Cide abaixo, duplamente envergonhado: por aquela figura ridícula de sapatos debaixo do braço e por me dar a impressão que o chão eram só cacos de vidro, quando os meus amigos quase todos jogavam à bola descalços.

Mas depois chegava a senhora do Porto e passávamos para outra dimensão. As histórias começavam ainda na estrada, connosco a enxamear à sua volta calcando o finíssimo pó, mil vezes moído pelos aros das rodas dos carros de bois; e depois pelos campos fora, no convívio da miríade de insectos e vermes, de que a sociedade, amante dos produtos e valores liofilizados, ainda não nos ensinara a sentir nojo.

Enquanto nos vinhedos do Solão a alquimia do Outonho transformava lentamente o verde das parras em cobre ou em ouro puro.

Depois da vindima em Aguim, colher uvas em vinha alheia deixava de ser roubo para ser rebusco. Os vendimadores deixavam de propósito algumas uvas de melhor qualidade para mais tarde as irem colher para si, o que também não era visto como um acto desonesto, na medida em que a mesma necessidade que levara ao acto, tivesse aguçado o engenho.

Mas nós antecipávamo-nos, sem respeito por esta regra da mais básica alquimia da justiça.

Serafim, Serafim, s’eu achar é pra mim!

O Outono era o Verão cansado. Cada vez mais, a esturreira do sol dava lugar a um calor suportável, e ao fim da tarde, quando o dia dava mostras de sonolência, e o calor que restava era um hálito morno que parecia vir mesmo das entranhas dos silvados e dos bosques. Até o canto nupcial das cega-regas se enchia de preguiça; ou então tinha sido bem sucedido, e por essa hora já tinham passado das palavras à acção.

E os camponeses com passadas largas e lentas de enxada às costas. O corpo a descambar de cansaço. Passavam por nós, tão cansados que só diziam:

Tarde!

Deixando que a entoação do cumprimento fizesse subentender a frase completa. E as mulheres atrás. Derreadas. Com grandes feixes de erva à cabeça e com um ar tão triste. Sempre vestidas de negro. Porque tinham sempre um ar triste as mulheres da minha terra? Às vezes riam como riem as crianças com fome: um pequeno intervalo na desgraça apenas, para depois continuarem a ser tristes. Nunca pensei nisto. Devo ter sido feliz, sim, porque nunca pensei nisto.

Quando deixou de vir a senhora do Porto ou quando deixei eu de a acompanhar? Não tenho a menor ideia. Talvez tenha sido na mesma altura em que aprendi a ter nojo dos bichos e das coisas da terra; ou tal como de um sonho, devo ter acordado apenas, para entrar noutras fantasias: para a puberdade, tão hormonal e prosaica como estúpida.

Um dia na loja da senhora Idalina vi-a a comprar uns chinelos de pano, que se destinavam a aproximar-se da empregada para poder espiá-la sem os seus passos serem ouvidos, e sofri um desgosto.

Com a senhora do Porto aprendi a dar valor às coisas até aí dadas como garantidas, por ter nascido no meio delas, mas que aos olhos de quem vê de fora são preciosidades; aprendi sobretudo a ver as coisas à minha volta para além da superfície, e, na falta de uma história convincente para cada uma delas, simplesmente imaginar uma, porque a fantasia é que torna a vida sublime. E isso colocava a senhora do Porto numa esfera do meu imaginário onde não se fazem canalhices, e tudo quanto recebi dela era demasiado valioso para ser posto em causa por causa daquele pecado.

Nunca consegui resolver esse conflito: era impossível condená-la e era impossível absolvê-la. E a ela devo isso também: ganhei a capacidade de conceber o indivíduo na sua multiplicidade, de aceitar o anjo e a besta coabitando dentro de todos nós, isto é, de assumir humildemente a consciência da humana mediocridade.

Publicado por

Manuel Bastos

3 comentários a “As Quatro Estações em Aguim – 2

  1. Caro Manuel Bastos

    Acaba de descrever nas entrelinhas um episódio comum a todos os mortais, a perda da inocência característica da infância, primeiro notado nos que nos rodeiam, para depois o percebermos em nós mesmos…
    A dicotomia entre o bem e o mal, é tão antiga quanto a Humanidade e patente em toda a religião, credo ou crença, cabe nos a nós decidir, nas nossas acções, qual dos dois prevalece e transparece!
    Temo pois, que pelas imagens com que somos presenteados diariamente, que a filosofia vigente nos dias de hoje, é, na sua maioria maléfica, temendo também, que isto seja apenas um longo Outono e que o pior (Inverno), ainda esteja para vir…
    Resta-nos a Esperança, sentimento que ficou no fundo da caixa de Pandora depois de aberta…
    A Esperança de dias melhores, de um equilíbrio global, onde cada um de nós valerá pelo que traz na mente e no coração, não na carteira, no banco, no carro, ou em qualquer outro abjecto bem de consumo!
    Até lá, poderemos sempre escrever e idealizar o Mundo, sem parafernálias maquiavélicas…

    • Caro Tiago,
      Apesar de tudo, não sou muito pessimista, olho sempre com mais atençao para a parte da garrafa que tem o líquido (sobretudo se for um bom vinho da bairrada) A humanidade tem-se desenrascado muito bem e tem encontrado sempre o caminho possível. À escala planetária somos um breve incidente, à escala galáctica, somos uma verdadeira insignificância. Mas acho que devemos viver de acordo com a nossa importância relativa, Um dia até o Sol se apagará e nada restará de nós, mas enquanto estamos por cá, deveríamos remeter para os momentos de exercício intelectual, as nossas divergências e as nossa locubrações, e dar oportunidade ao exercício da fruição da vida, ela mesma…. que tal voltarmos àquela conversa da confraternizaçao… de garrafa sempre meia cheia. Quem é que organiza isso???

  2. Caro Manuel Bastos

    Ora aí está uma boa ideia, uma tertúlia de garrafa meia cheia!
    Seria sem dúvida o mote para boas horas de conversa e confraternização saudável… Venha daí esse evento, contem comigo!

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