As Quatro Estações em Aguim – 1

Nota Prévia: Como os ânimos estão a ficar um tanto exaltados proponho-vos a leitura de um pouco de prosa sem que isso sirva de alienação para os problemas de Aguim.

Este é um de quatro textos que me proponho publicar aqui com a intenção de dar a conhecer a Aguim da minha infância e que persiste em manter-se viva na minha memória.

O Último Verão da Minha Inocência

Antes do alcatrão, o pó nas estradas e os pés das mulheres encortiçados ignorando as pedras. Eu olhando o meu mundo de criança rente ao chão; tudo visto de baixo para cima. A ouvir o restolho de uma cobra na erva, o sobressalto dos pássaros numa oliveira. A sentir a paciência das vinhas, quietas, a aguardarem que as uvas amadurecessem.

– Tudo a seu tempo.

A minha avó, especialista em paciência, compreendia as vinhas. Eu não: – Queria um cacho, vó.

– Tudo a seu tempo.

E eu desistia porque o Verão era longo.

Os adultos falavam de coisas estranhas. Falavam depressa de mais. E tinham sempre que fazer.

– Porque demoraste tanto Zé?

E o meu pai: – Fui abicar as couves.

Só o meu avô se deixava às vezes ficar a fingir que dormia a sesta. A fingir: porque a mão enxotava as moscas como o rabo do cavalo. De vez em quando o cavalo resfolegava, amarrado à velha figueira, com o saco de ração pendurado nas orelhas para não ter de dobrar o pescoço para comer, e o meu avô com o máximo de ternura que lhe conheci: – O que é? – E ele acalmava-se. O meu avô falava frequentemente com o cavalo. Não admira, passavam muito tempo juntos.

As moscas inquietas, e zás, a mão a enxotá-las de um lado e o rabo do cavalo a enxotá-las do outro. O zumbido das moscas a fazer-me sono. E o restolho da erva. O sobressalto das oliveiras. A paciência das vinhas.

Às vezes, sem eu contar, havia festa e toda a gente deixava de trabalhar. Tudo cheirava de modo diferente. Eram os mesmos cheiros, mas mais alegres. As mulheres aperreavam os pés encortiçados em sapatos enormes, só por uma questão de elegância, o que lhes dava um andar torturado, e os homens usavam com orgulho uma tira de pano pendurada ao pescoço, elevada à categoria de gravata, e um raminho de limonete atrás da orelha para dar um toque de classe. Então é que eu notava que mal se lavavam, que apenas se desenxovalhavam. Passavam uma água pelo corpo, tiravam a maior, mas o encardido ficava. A marca do castigo, da labuta, da tortura habitual do trabalho. Tão habitual que havia um certo desassossego nos dias de festa, como se os corpos habituados ao esforço se sentissem descontrolados sem o lastro pesado do trabalho.

As festas apanhavam-me sempre de surpresa. Num dia tudo tinha os mesmos vagares, e no outro tudo acordava eufórico, e, quando eu me habituava, lá voltava tudo inesperadamente à mesma rotina. Os cheiros acalmavam de novo, familiares de novo, como uma cama já afeita ao corpo.

O cheiro hormonal do cavalo, o cheiro nutritivo do estrume, o cheiro cáustico do lume, o cheiro acre da massa lêveda a fazer adivinhar o cheiro sem adjectivos supérfluos da boroa fresca.

Quando não fingia dormir o meu avô assobiava; só uma nota, incessante, distraída. Ele a olhar para um lado e as mãos a fazerem as coisas numa destreza mecânica para o outro. E o assobio sempre igual, só interrompido para tomar fôlego. Do outro lado da rua o Ti Zé Sécio batia, batia, assobiando também uma nota só. E o ferro gritava a cada marretada, e depois num arrepio cortante fazia ferver a água fria da pia ao lado da forja. Saía a chiar e sem fôlego daquela têmpera rude e o Ti Zé observava-o com minúcias de ourives, e às vezes insatisfeito reiniciava a tortura.

O meu mundo por essa altura dividia-se em dois grupos de pessoas: os que passavam fome e os que tinham falta de apetite. Ora, se os que passavam fome nunca tinham falta de apetite, porque me torturavam em casa para eu comer? Eu olhava invejoso para a voracidade do Xico Pã. Ele mergulhava os dedos no barro e trazia para cima um pequeno tubérculo branco. – Experimenta é uma zonzelha. – E eu surpreendido com o sabor picante a rabanete.

Zonzelhas no Barreiro e medronhos no Monte Grande, tâmaras no Sobreirinho e amoras em Vale de Cide. A fome era uma virtude.

Ele a devorar um tomate e a rir-se de me ver mordiscar o meu cheio de escrúpulos. Foge repentinamente sem eu perceber porquê. Eu pasmado a vê-lo ir embora, e só a perceber que o momento era de perigo ao ver a ira nos olhos do Sr. Luis Bandarra.

O tribunal na loja da minha mãe com o Sr. Luis a exibir o meu boné de palha como corpo de delito, e a apontar a minha camisa com a marca ensanguentada do crime. Eu a sentir-me o assassino de um tomate.

– O meu filho a comer tomates da horta? – A minha mãe confusa.

– Mas ele é tão biqueiro… – Eu nem merecia castigo.

O meu pai ofendido na honra, de mão irrequieta, e as minhas orelhas a arder. O meu avô a defender-me só para contrariar toda a gente, e eu a jurar arrependimento de lágrimas manhosas.

– Vejam lá, uma amizade tão grande com o cachopo mais pobrezinho do lugar.

Ficou decidido: tudo se deveu às más companhias, e ficou toda a gente satisfeita. Só a mão do meu pai teimosa, com a minha mãe a segurá-la: – Ó Zé!

O meu amigo com alcunha de deus grego a roubar para matar a fome e a levar com as culpas pela minha cobardia. Eu sempre tão censurado pela minha falta de apetite a concluir finalmente que a fome não era uma virtude. Virtude era saltar o muro, e a ansiedade no meu estômago a confundir-se com a fome do meu amigo. Virtude era trepar a nespereira e comer as nêsperas mornas do sol. Virtude era estar alerta e fugir sem sequer ser visto – o Ti Mariano com a vara de picar os bois chegava sempre tarde.

Quem não guardar no cacifo da memória uma delinquência infantil não sabe verdadeiramente o que é ser feliz.

Mas às vezes as coisas paravam. As pessoas ganhavam um passo lento, inconsequente, as pernas sem saberem para onde se dirigirem, os olhos pasmados e as mãos inúteis, sem uma ocupação que lhes desse préstimo. Diziam-se frases consensuais, parcimoniosas, tão previsíveis que normalmente começavam por “Pois é…” A fatalidade punha as pessoas de acordo. Olhavam-se e encolhiam os ombros, porque todas as palavras possíveis eram escusadas e todas as outras eram inconvenientes. De vez em quando ouvia-se um “Coitado!” E depois o choro sem pudor. O desespero sem o constrangimento da etiqueta.

E por fim tudo a sossegar de novo. Todos os sobressaltos a serem absorvidos pela rotina.

Eu olhava a parreira e as uvas ainda verdes. Que longo foi aquele Verão.

Um dia vieram uns homens e tiraram o telhado da cozinha. Assim, sem me avisarem. A gente a comer o escorrido e as estrelas por cima de nós. Às vezes passava um morcego a dar estalidos muito rápidos. A Lua e as estrelas a transformarem o meu jantar numa coisa sobrenatural.

A pequenez da cozinha do forno e toda a imensidão do universo. Será que vista das estrelas aquela mesa, com todas as pessoas que eu amava, ainda vivas à minha volta, pareceria igualmente sobrenatural?

Alguns dias depois, os homens vieram devolver o telhado, e eu levei uma semana a protestar por me terem tirado o céu.

Foi mais ou menos por essa altura que eu reparei na mudança do olhar. Os mesmos olhos, o mesmo olhar mas uma demora exagerada, uma atenção excessiva. As mãos também mais lentas, e o meu corpo a responder sem eu querer. Os gestos de sempre eram agora mais significativos, intencionais. Mas havia qualquer coisa de deslocado, de desconfortável, a querer tomar posse de algo em mim, algo ainda adormecido que reagia estremunhado a um prazer prematuro.

E tudo mudou repentinamente naquele verão. As uvas maduras na parreira do terraço a oferecerem-se em despudores de fêmea no cio, e eu, envergonhado com a minha confusão quanto às virtudes da fome e da gula, a tentar prender a minha atenção às tremuras do coiro do cavalo a reagir às moscas. A tentar perceber se o meu avô estava a dormir enquanto a mão imitava uma cauda a dar, a dar. Mas eu, na verdade, desatento, definitivamente desatento, ainda sem saber que nunca mais na minha vida conseguiria acertar o passo por aquele ritmo conformado, em que cada coisa ocupa apenas o seu lugar, e no tempo esperado. Em vez disso, um desassossego, uma urgência, uma inquietação; uma busca desnorteada de algo em falta mas inteiramente desconhecido. A descoberta da incompletude do corpo: o que dantes lhe era apenas adjacente e fraterno era agora complementar e cúmplice – o pecado da fome.

Os arreganhos trocistas dos adultos a lerem os meus pensamentos. Tudo de repente tão divorciado, tão adverso, tão exterior a mim.

Por fim, como uma memória que se desvanece, a desidealização da Natureza: a erva sem mais bulício do que a passagem ocasional de um bicho, alguns pássaros nas oliveiras mudas, nada mais do que alguns pássaros.

E as vinhas? Perdera definitivamente naquele longo Verão, o sortilégio de me espantar com a paciência das vinhas.

 

Publicado por

Manuel Bastos

12 comentários a “As Quatro Estações em Aguim – 1

  1. Na qualidade de observador tenho acompanhado nas ultimas semanas este forum dos tempos modernos que considero interessante e importante.
    Fico triste, mas não surpreendido, por apenas os temas polemicos e dados a um certo conflito, por vezes inutil, merecerem adesão e participação.
    Quanto ao texto do Sr. Manuel Bastos o que dizer ?
    Os mais novos poderão ser levados a pensar que se trata de parte de um romance.
    Os que já tem alguma idade, ao ler o texto irão sentir o cheiro de outros tempos. Tempos diferentes , mas não menos interessantes pois ficaram bem marcados na nossa memória. Eu também comi zonzelhas. Não por fome mas porque o meu avô Calisto as trazia do campo, me ensinou a encontrá-las e tudo o que vinha do meu avõ tinha um sabor diferente.

  2. Sem dúvida, um texto bem, mto bem escolhido! Aguardo a querela…
    E este elogio que sirva pra demonstrar a minha boa fé.
    Porque continuo sem saber qual é a residência do novo presidente da junta. Arre, que vocês são complicados! E denoto desde já, sintomas de provincionalismo mesquinho ao “se enevarem” com uma simples questão. se querem ser progressistas, construtivos, avançados, INOVADORES, não podem desconfiar de uma simples questão, emanada de um próximo, anónimo é certo, mas interessado! e não me venham com falta de coragem. Estamos no espaço virtual. Onde mora? E Já agora, situação profissional? Actual?

  3. Se me responderem, poderei desenvolver a justificação para tal curiosidade. Senão o fizerem será prova de autismo. PURO!

    • Se não lhe respondem é porque acham a sua questão irrelevante, eu, pelo menos, acho.

      Peço-lhe também que mantenha os seus comentários no tema do post a que se referem. Tem à sua disposição um fórum em http://forum.aguim.net/ onde pode lançar as suas próprias discussões (foi para isso que ele foi criado)

  4. Realmente acho que não vale a pena a resposta, se calhar quer saber onde mora para fazer como uns que fizeram e ir lá sobre o luar da meia noite e matar-lhe o cão e jogar oleo queimado para dentro do poço, isso sim é que voçe devia perguntar por quem são os responsaveis por esse acto podia ser que alguem tive-se visto.

  5. Eu penso que assim sim. É com textos destes que poderemos ter uma Aguim melhor. Recordar tempos idos, tempos em que as traquinices faziam parte de um quotidiano e que não havia grande maldade nas pessoas e nos seus pensamentos. O saltar o muro para "ir à fruta", o jogar à bola na rua e outras actividades como tal, sem que os pais descobrissem, o fazer as coisas às escondidas demonstravam uma união, uma cúmplicidade entre pequenos e graúdos que hoje em dia já não existe.
    É sempre um prazer ler textos como os que normalmente coloca.

  6. Sr. Manuel Bastos…….mesmo que eu saiba ou não do que se trata, é delicioso ouvi-lo!!

  7. O texto é realmente apetitoso, um regresso às origens, a um tempo diferente, onde o valor das coisas e das pessoas nada tinha que ver com dinheiro ou materialismos!
    Também eu "roubei" fruta em miúdo e fugi do respectivo proprietário e não havia fruta mais saborosa que essa… Agora os tempos são outros, se vamos voltar ao mesmo "o futuro a Deus pertence"!
    Quanto às querelas políticas, o período eleitoral acabou e apurados vencedores e vencidos, chegou a hora de trabalhar e mostrar serviço à comunidade.

  8. Olá Primo Manuel!!!
    Venho uma vez mais agradecer-lhe o partilhar connosco, os mais "novos", histórias de outros tempos, de infancias diferentes das que vivemos.. e claro.. deixar-me com saudades da nossa Aguim de outros tempos… e de agora!
    tambem eu, andei a roubar a nespereira do Ti Arménio aos domingos à tarde… belos tempos!!! em que brincavamos na rua, todos juntos em tremenda algazarra… ir à esquina da Ti Carmina comprar chupas, chiclettes e sugus, ou somente uns suspiros e/ou tremoços.. enfim.. nao me posso queixar da infancia que tive!!!
    obg uma vez mais…helena

    • Olá Helena!
      Cada um de nós traz uma Aguim diferente na memória. A minha já não existe, daí a minha presunção em recriá-la em palavras para que perdure. Que isso possa divertir os meus mais jovens amigos, que nem sequer conheço, é algo que me surpreende mas que me leva a continuar a escrever aqui com um sentimento de gratificação.
      Eu é que agradeço.

  9. Não há nada que para sempre dure, mas é sempre bom ouvir histórias de tempos que já não voltam, para mais contadas por alguém que tem o dom de começar por contar história e acabar a contar uma estória. Há muita nostalgia nas palavras do sr. Manuel, que parece que nos puxa (tanto ele, como a nostalgia…) para um sofá, enquanto ele, de comando na mão, mete um DVD na televisão e vai mostrando uns poucos de episódios do que poderia ter sido uma espécie de "Conta-me como foi…em Aguim"… Para mais, eu, que também sou daqueles cantos, ainda sou do tempo de algumas das pessoas que aqui se falam, pelo que há algo sempre algo que me toca pessoalmente.
    Aqui ficam os meus agradecimentos pelas suas memórias, que rapidamente nos trazem à memória algumas das nossas!

    PS: tenho andado arredado deste blog e vi que perdi a parte truculenta da coisa, mas vou procurar ser mais assíduo…:)

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