O sótão da casa da adega é um amontoado de lixo. E este amontoado de lixo é a arqueologia da minha vida. Objectos mortos; amortalhados de pó. Cadáveres de objectos, quietos no tempo à espera que os esqueçam de vez, para que possam finalmente dissolver-se na terra mãe de onde vieram.
Avanço furtivamente, com o sentimento de quem profana um túmulo. Afasto as teias de aranha que parecem panos impregnados com a alma do tempo, e que boleiam a forma dos objectos, como um lençol cobrindo um cadáver.
Sopro o pó de uma enchó do meu avô, e ela parece que acorda ganhando humanidade. Um foicinho da minha avó. Uma podôa do meu pai. Um bastidor da minha mãe. Sem a mortalha de pó, ressuscitam e parece que procuram as mãos dos donos, as mãos que calejaram, as mãos que os moldaram a eles. Não são objectos em série, são objectos feitos pelo uso, que ganharam o jeito do dono; noutras mãos seriam maljeitosos. Eram prolongamentos dos braços, como próteses ortopédicas; partes sobrevivas dos meus antepassados.
Caiu-me à frente uma caixa de papel levantando uma nuvem de pó.
Quando a nuvem de pó se dissipou, um grupo de pessoas olhou-me de frente. Imóveis. À medida que os meus olhos procuram os pormenores da fotografia, parece que se movimentam um pouco. A sua imobilidade dá-lhes um ar sarcástico, parecendo desafiar-me, e dou por mim a pretender apanhá-los na fraqueza de um movimento. Desvio o olhar para uma mancha do papel e volto a prestar-lhes atenção. Esta disputa demora uns segundos; o suficiente para se tornar uma patetice. Mas não consigo dominar-me. Os meus olhos traem‑me e voltam sempre como que atraídos por aquelas figuras que parecem zombar de mim, olhando-me de frente; como um friso de espectadores estáticos mas atentos, em frente do palco; suspensos da acção que decorre aqui, onde, eu o actor, devesse dizer a próxima fala, efectuar o próximo movimento.
Há um pormenor da fotografia que acaba por me prender a atenção. A posição carinhosa e protectora do meu avô, segurando-me pelos ombros. O meu avô tinha uma má relação com os seus sentimentos. Não era homem de grandes manifestações de afecto, o que lhe valeu a alcunha de Vinagre. Lembro-me que me embalava cantando canções obscenas; e essas canções são a única manifestação de afecto de que me recordo. Vê-lo assim naquela atitude carinhosa e protectora faz‑me subir um novelo de saudade, lentamente até à garganta, vindo não sei de que memórias.
… a CONTINUAR …
Anonymous
12 de Dezembro de 2008 às 18:57
“Lembro-me que me embalava cantando canções obscenas; e essas canções são a única manifestação de afecto de que me recordo” – as manifestações de afecto, felizmente, ainda não são regidas por normas. Como tal, podem advir do mais insuspeito dos sujeitos, e sob múltiplas e variadas formas. Porque não a obscenidade?