Nesse tempo os copos eram um álibi. Porque os homens têm este pudor infantil em assumirem os afectos e o que nós queríamos mesmo era estar juntos. Às vezes regressávamos a casa tão tarde que surpreendíamos as pessoas por já estarmos a pé tão cedo. Éramos eternos, Zé, porque a vida era um jogo fácil de jogar e nós ganhávamos sempre.
Poucas vezes me senti mais livre do que quando faltávamos às aulas para sentir o prazer da preguiça nos pinhais do Montouro, é que quando sabemos pouco da vida basta fazermos algo reprovável para nos sentirmos importantes.
Eu queria ser pintor, tu economista, mas nunca fizemos muito por isso, e está certo, porque se realmente isso era para nos dar muito trabalho então é porque não seria tão bom assim e depois o que não faltam por aí é pintores e economistas e o mundo não está melhor por isso.
Depois veio a guerra e durante um longo tempo os nossos caminhos foram diferentes: tu ficaste a viver a vida e eu fui pô-la à prova; quando nos voltámos a encontrar descobrimos surpreendidos que nos tínhamos tornado adultos e durante muitos anos acreditámos que ser adulto é aceitar a vida possível. Bebemos ainda muitos copos a servir de álibi ao afecto mas nem sempre com as melhores companhias; nem todos os nossos companheiros dos copos nos mereceram, Zé. Nem sempre confraternizámos com quem merecia e um dia a minha ambição cresceu desmedidamente e eu fui tentar… apenas ser feliz.
Tínhamos tacitamente uma conversa agendada, ainda um abraço para dar, ainda um copo para beber… ah como algumas pessoas não entendem porque precisamos sempre de um copo para disfarçar o afecto; é que isto de ser homem tem as suas fraquezas; porém, agora com mais uma cadeira vazia à mesa, acho que o álibi já não funciona.
Estava um belo dia de sol quando partiste, só cá dentro é que chovia. Aprendi a chorar assim em África quando alguns de nós partiam e os que íamos ficando sentiam a vida como um privilégio imerecido. Aprendi a chorar assim quando era preciso fingir que os que ficavam eram sempre suficientes. Mas não são Zé. Há coisas que jamais faremos sem os que vão partindo. Há coisas que jamais faremos sem ti.
Manel