Olho para trás e o Tirone está sentado no meio da rua ganindo baixinho e vendo-me afastar, com a cabeça um pouco de lado. Chamo-o batendo com a mão na perna e ele em vez de se aproximar poisa a cabeça no chão entre as patas. Chamo-o de novo e ele parece determinado a não sair dali. Entro no Largo da Capela e olho ainda mais uma vez para trás e ele continua com a cabeça entre as patas tristíssimo.
Reparo que na rua do Outeiro estão dois tipos a falar. Um parece zangado, o outro conciliador. O zangado esbraceja e avança, o conciliador abre os braços de vez em quando e vai recuando. Não parece uma rixa entre ambos porque falam em voz baixa. À medida que um recua e o outro vai avançando, desaparecem por detrás da casa dos Cerveiras. E eu desço a rua do café.
Ainda penso no Tirone mais uma vez. Porque será que não quis entrar no Largo da Capela? Será que os cães também rivalizam entre si, por uns serem do Sobreirinho e os outros da Capela?
Pela janela do café vejo o Toni a jogar às damas com o Ti ‘Lexandre. O Toni está recostado na cadeira fingindo nem olhar para o tabuleiro e o Ti ‘Lexandre levanta uma mão, com o polegar e o indicador a fazerem uma argolinha e esticando os outros dedos como se fosse empurrar uma pedra. Hesita. Recua. E na falta de melhor, aproveita para ajeitar o chapéu que tem pousado numa cadeira a seu lado. Depois fica pensativo, ligeiramente curvado para o tabuleiro. Ao lado, numa mesa de King, todos saltaram repentinamente numa gargalhada, olhando as cartas sobre a mesa, como se elas tivessem feito algo inesperadamente hilariante.
Tanto quanto sei, houve duas coisas que alteraram as noites de Aguim: a luz eléctrica e o café. Nunca mais voltaram a ser a mesma coisa depois que o café abriu. Lembro-me perfeitamente dos primeiros dias em que as pessoas entravam com o ar solene de quem entra numa igreja. De como se sentavam com aprumo junto às mesinhas. Um velho de que já não membro o nome bebia a bica delicadamente com a colherinha. A maioria tomava o que sempre tomaram nas tavernas: vinho tinto; mas não diziam “Quero um penalty” ou “Quero mais um petardo”, diziam com um maneirismo cómico: “Um copinho de vinho tinto se faz ‘abor.”
Sorrio ao olhar o nome pintado na parede “Café Nouo Dia”. O Sr. Pinto a querer dar um toque vernáculo à inscrição e as pessoas a rirem-se do pintor: “Ó inganô-se, ó no sabe escrever…”
Durante algum tempo o Café Novo Dia trouxe a Aguim o ambiente que já não era comum em lado nenhum; de certo modo recuou no tempo para criar um espaço de sobriedade e bom gosto, e fez Aguim avançar no tempo até que um dia ficou a par com as invencíveis leis da concorrência e da vulgaridade, e mais uma vez as noites de Aguim mudaram para nunca mais voltarem a ser as mesmas.
O Tirone aguarda-me ao fundo da rua do café, deu a volta ao casario para vir ao meu encontro e está visivelmente feliz por me ver. E aqueles gajos que não apareceram. Se calhar o pai já descobriu que fomos nós que escaqueirámos a motorizada num acidente, a semana passada, e estão de castigo.
E regresso finalmente a casa com o Tirone que agora vai cheirando todos os sítios onde urinou à vinda para cá, e quando lhe parece que o cheiro não é suficientemente intenso renova a dose.
Uma janela pequena na noite. Quatro quadrados de luz amarela unidos por uma cruz. Por detrás da janela deve estar gente. Será um quarto? Alguém que faz serão? Alguém doente que acorda a meio da noite em busca de auxílio? Sinto que se desenrola uma história por detrás daquela cruz negra que segura os quatro quadrados de luz amarela no meio do casario e no meio da noite. Apetece-me chegar-me ao pé dela para conhecer essa história. A eterna curiosidade pela vida alheia que neste momento me atrai tanto como à maior coscuvilheira de Aguim. Por detrás daquela janela acontece qualquer coisa, existe uma vida, paixões, conflitos; um segredo que me exclui. E eu vou-me afastando cobardemente; eu e o Tirone, para longe daquela hipótese de acontecimento, para o meio de coisa nenhuma.
Será que um dia vou recordar esta noite em Aguim, em que não aconteceu nada? Eu, o meu amigo Tirone e o Tempo. O Tempo a passar tão lentamente; à velocidade em que se deveriam apreciar as coisas boas da vida. À velocidade das histórias da minha avó, que ia falando e mexendo com a tenaz para espevitar o lume, com um riso nos olhos que nunca desaparecia, mesmo quando o rosto ficava triste. Puseram-lhe o nome de Senhora do Ó quando era nova, por ser bonita. Depois o tempo dela passou, até chegar o meu tempo, mas os olhos quase sem verem nada, continuaram sorrindo, e as palavras vinham de vagar, cansadas. Dá-me a ideia que não diziam nada, eram só palavras, ditas sem pressa, só porque lhe dava prazer falar comigo. Como uma música que trauteasse para me adormecer sem ter em conta os versos. Dizia muitas vezes: “Parece que foi onte” e continuava a história que nunca tinha fim. As tenazes a espevitarem o lume, o rosto triste e os olhos sorrindo, os olhos sorrindo sempre. E não acontecia nada. Só o lume se alterava um pouco de vez em quando. Parece que foi onte.
Vou dormir.