Bem, já não vou esperar mais, eles não virão. Não sei o que aconteceu, mas o pior é que agora não estou com disposição para passar o resto da noite no café e também não tenho sono.
Acende-se uma luz na casa do Sr. Alves e ao longe ouve-se um ruído de motor que se vai aproximando, parece ser uma motorizada. Vem do Peneireiro e passa por mim. Leva dois tipos. A luz da motorizada ilumina-me por um segundo e um deles grita: “Eh Manel!” e seguem para o Robelho. Param assim que saem do largo e não faço a mínima ideia de quem são. Ouço-os falar um com o outro. O Tirone acordou e apontou o nariz para o sítio de onde vêm as vozes, quieto como se fosse um animal empalhado.
Há dias em que nada acontece em Aguim. Em que o tempo parece a água congelada de um rio. Podia levantar-me do poço da bomba do Sobreirinho onde estou, mas este desalento que sinto por não ter nada que fazer este serão, imobiliza-me. Devo parecer um animal empalhado também.
Começo a andar sem que isso seja verdadeiramente um propósito meu e o Tirone assustou-se. Caminho em direcção à Capela com o Tirone a meu lado. Às vezes dá uma corridita para alçar a perna e urinar e volta para o meu lado. Urina em todos os objectos que sobressaem da monotonia da estrada. Reparo novamente que está manco.
Dou conta que também caminho do lado oposto das luzes da rua. Acendo outro cigarro. Hoje a minha mãe disse-me que desconfia que eu fumo e avisou-me que o tabaco me fará muito mal à saúde. Respondi-lhe que se fosse para me fazer bem à saúde eu tomaria óleo de fígado de bacalhau. Ela não percebeu a piada e eu fiquei na minha, já estou habituado a que o meu conceito de humor pareça idiota para a maioria das pessoas. Mas de facto acho que já estou a exagerar com os cigarros.
O sino da capela bate uma vez. O som fica um bocado a vibrar no ar como as ondas de um lago onde cai uma pedra e depois o silêncio volta e fica só a memória daquela badalada solitária. Há poucas coisas que melhor simbolizem o tempo do que uma badalada de um sino velho. Uma hora. Outro dia começou. Quem repararia nisso se não fosse o sino? Não sei o que é o tempo, mas para mim agora o tempo é apenas uma coisa que não anda nem desanda. É um som metálico, vibrante, algo lúgubre, mas também familiar, acolhedor, que cria ondas no ar como uma pedra num lago.
A gente olha para o ponteiro grande do relógio da capela e vê-se bem que o tempo não anda, de repente dá um saltinho quando nos distraímos. O tempo é mesmo a coisa mais traiçoeira que existe, só quando não temos nada que fazer é que o tempo não anda. Distraímo-nos e pronto, já passou.
Bate novamente. Sorrio ao pensar que o sino de Aguim agiu como se se tivesse enganado e viesse dizer: “Agora é que é uma hora, há bocado enganei-me, desculpem.” O espaço de tempo entre as duas badaladas não conta, foi um lapso, O sino da capela de Aguim baniu-o das nossas vidas. Não aconteceu. Para as pessoas que já dormem não faz diferença mas para mim e para o Tirone foi um ror de tempo. Para mim uma chatice sem fazer nada, para o Tirone, pelo menos duas mijinhas numa pedra e num poste de electricidade.
Na avenida Elísio de Moura um carro faz chiar os pneus numa travagem forçada. Aguardei pelo som do embate, mas em vez disso ouviram-se duas buzinas diferentes, como se os carros, e não os condutores, estivessem agora a discutir um com o outro devido àquela travagem.
Às vezes apetece-me também travar a fundo para ver se ponho o Tempo a andar à velocidade que ele tinha em Aguim quando os velhos se sentavam à porta das tabernas a adorar o sol de fim de Verão e as velhas se sentavam no rebate da Capelinha de S. José a catarem as lêndeas com um pente de dentes muito fininhos para cima de um pano branco, sobre o regaço. É essa a velocidade certa para fazer as coisas de que se gosta de verdade, mas é tão difícil agora. O Tempo é tão veloz, há sempre tanta coisa para fazer ao mesmo tempo.
Parei um pouco aqui hoje. Durante alguns minutos o Tempo desacelerou. Durante alguns minutos não tive nada que fazer e é isso que é preciso para ler e para escrever, que é uma forma de conversar. É preciso não ter pressa para se poder conversar. É preciso não ter nada para fazer para cultivar a amizade.
Mais uma vez a história ficou para trás. Não faz mal, conversar é mais importante. Logo voltarei sem pressa, como quem conversa à porta de uma taberna ou cata lêndeas ao sol.