Da Lomba à Capela – 2

O Tirone segue atrás de mim enquanto me dirijo para o Largo do Sobreirinho. O Largo do Sobreirinho não é uma praça, nem uma rotunda e muito menos um cruzamento. O Largo do Sobreirinho não é um local de passagem; é um local de confluência, como um lago onde as ruas vêm desaguar. O melhor que o Largo do Sobreirinho tem, é não ter nada. Na verdade tem uma bomba lá ao fundo para onde me dirijo, mas para além disso não tem mais nada. É como uma caixa vazia ou uma folha de papel em branco; podemos fazer dele o que quisermos. De certo modo é como o facto de a minha rua não ter nome. Cada um o concebe como coisa sua. Nós, que habitamos aqui, temos orgulho no Largo do Sobreirinho; é como um resquício de territorialidade tribal. Quando os do Robelho ou da Capela vêm para aqui jogar à bola nós sentimo-nos invadidos.

Sento-me na borda do grande cilindro de cimento do poço da fonte e fico à espera já desconfiado com a demora. Decerto aqueles gajos não virão.

Em casa do Faria ainda se ouvem vozes e a luz que passa pela janela da cozinha pisca quando alguém lhe passa à frente. Penso que tenho dois tipos de amigos: Os do dia e os da noite, o Faria é dos do dia, e a sua amizade vai ao ponto de ter um objectivo a meu respeito, um projecto: ganhar-me para as coisas do desporto. Acho que já desistiu de mim para o futebol e agora investe no atletismo. Já medimos rigorosamente cem metros, que afinal são a distância entre três postes de electricidade e uma vez por semana põe-me a correr como um desalmado; mas não consigo descer dos onze segundos e um quarto. Não sei como é que ele mede um quarto de segundo no relógio de pulso. Já decidimos que temos que improvisar uns apoios para o arranque, porque faço os últimos cinquenta metros em cinco segundos e o problema está portanto no arranque. Acho que ele me engana para me entusiasmar e eu finjo que não dou por nada para ele continuar a insistir. Se calhar é isto que é a amizade.

Batem uma porta e a luz apaga-se na casa do Faria. As vozes aumentam um pouco e depois vão-se esfumando lentamente e quando o silêncio prevalece o meu amigo do dia esfuma-se também do meu pensamento.

O Tirone levanta-se e põe-se a cardar o pelo do pescoço com uma pata traseira, depois acalma-se e levanta-se de novo e volta a catar-se, ganindo de nervosismo ou de dor. Senta-se finalmente ainda um pouco agitado.

Da rua do Robelho vem alguém a correr, surge debaixo da luz do poste por instantes e desaparece pela ladeira do Arvoredo.

Agora, a noite. Só a noite. Eu, o meu amigo Tirone e a Noite.

Acho que não vêm já, começa a ficar tarde, daqui a pouco desisto.

À noite, Aguim transmuta-se, não se transfigura apenas como qualquer outra terra, não; transmuta-se, isto é, passa para outra esfera, outra dimensão, passa a ser outra coisa. Algo fechado sobre si, onde identificar alguém pode ser considerado um abuso, uma devassa. As luzes pitosgas no cimo dos postes, cuja rede eléctrica é ainda do tempo da Cooperativa, não alumiam nada e são vistas como uma ameaça. É comum as pessoas passarem do outro lado da estrada, onde será mais difícil reconhecê-las.

Acendo mais um cigarro enquanto espero por aqueles gajos e ouço o Tirone a ressonar. Eu, a noite de Aguim e um cão que ressona.

Olho a última frase no monitor do computador, com o cursor a piscar e dá-me a ideia que não foi escrita por mim. “Eu, a noite de Aguim e um cão que ressona.” Li-a em voz alta e soou-me como um título de qualquer coisa, um estribilho, algo que tivesse ouvido algures; algo que parece mais do domínio público do que meu.

Ao escrevermos um pensamento, ele deixa de ser um pensamento. Mas voltará a sê-lo quando for lido. Porém, será um pensamento pensado por fora, como é vista a imagem que os outros têm de nós. Agora, à distância de tantos anos, quem está sentado no poço da fonte do Sobreirinho não sou eu, é alguém que vejo de um futuro que já chegou e que me dá uma perspectiva de espectador; ou por outras palavras, ao ler aquela frase, como um leitor a leria, quebrei o sortilégio da escrita, o encanto da história, e fiquei confrontado com a realidade, que é sempre mais prosaica que a imaginação.

E o carro do lixo fazendo um estardalhaço dos diabos por esta rua abaixo, acaba com o resto. OK, mais um intervalo, até um dia destes.

Publicado por

Manuel Bastos