No Largo da Capela da Nossa Senhora do Ó o relógio da torre deve marcar nove e meia e as orquestras frente a frente afinam os instrumentos como dois exércitos a prepararem-se para uma batalha. Sinto o aroma doce-apimentado do leitão, o cheiro intenso da chanfana e o complexo bouquet das verduras sobre a rua, como uma passadeira aromática a indicar por onde passou a procissão. No meio do largo, as pessoas vão virar-se para um coreto e depois para o outro, conforme orquestra que tocar, mal saindo do lugar onde estão e de quarto em quarto de hora os novos altifalantes do relógio eléctrico vão berrando as horas em notas desgarradas, como se de súbito um músico tivesse enlouquecido e desatasse a tocar o que lhe viesse à cabeça, enquanto o velho sino de bronze humilhado e triste aguarda o seu segundo momento de glória do ano, quando for, amanhã de novo, solicitado para a tarefa solene de marcar o compasso da procissão.
Aqui, o silêncio na humidade do cacimbo. Aqui, o silêncio é uma harmónica misteriosa que vem não sei de onde, ora arfando, ora expirando longamente até ficar sem fôlego.
Na noite opaca com a humidade flutuante do cacimbo, a luz ao fundo da rua é apenas uma mancha amarela na ardósia molhada do céu, não ilumina nada.
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