O Ti Zé

Foi há tanto tempo que já não me lembro bem. Eu via o dia chegar pela janela do quarto e, posso dizê-lo, ouvia-o chegar também. Um dia a casa cresceu e aquela janela foi emparedada. Se agora o Ti Zé Cécio estivesse a calçar uma roda de carro-de-bois e eu estivesse no meu quarto, não ouviria o dia a chegar.

Só muitos anos mais tarde numa Ópera de Verdi eu ouvi um som parecido. Punha o disco para trás e fechava os olhos para ver o Ti Zé a dirigir os empregados que seguravam uma enorme roda de madeira enquanto ele malhava com precisão o aro de ferro em brasa que haveria de a proteger dos calhaus do caminho.

Primeiro era preciso moldar o aro de ferro com o tamanho necessário para que o fogo o dilatasse o suficiente para ele encaixar na pesada roda de madeira; depois era necessário pegar-lhe com umas grandes tenazes de ferro, quando estivesse em brasa, e encaixá-lo na roda batendo-lhe com o malho a toda a volta, ao mesmo tempo que sobre ele era despejada água com o intuito de o arrefecer, para não queimar a madeira e para o fazer diminuir de tamanho de modo a que ficasse bem fixo na roda. Água a mais e ele ficaria pequeno demais antes do tempo, água a menos e ele queimaria a madeira da roda a ponto de esta ficar menor e não segurar o aro.

Como o Ti Zé conseguia fazer aquilo tudo é que eu não sei: com uma roda de madeira com uns vinte quilos, um aro de ferro em brasa com mais de cinco, com uma tenaz enorme numa mão e um malho na outra, enquanto gritava para os empregados que pegassem ali, que largassem acolá, que despejassem mais água, que ateassem o fogo. Tudo à mistura com os condimentos verbais e as evocações habituais à sua duvidosa genealogia, não fossem eles parar para se coçar.
Esta coreografia dos empregados em volta da roda e do aro de ferro, este coro de vozes, o vapor da água, o fumo e o cheiro intenso a madeira queimada a envolvê-los compõem a cena mais fantástica de que me recordo até hoje.

Há dias o Ti Zé Cécio foi-se embora. Deixem-me dizer que se foi embora apenas, como se a vida fosse um sítio de onde a gente se pudesse ausentar como de um lugar mal frequentado – sair sorrateiramente, sem dramas nem rancores.
Quando eu quiser abrir uma janela emparedada há muito tempo, por onde antes eu via e ouvia chegar o dia, colocarei a Aida de Verdi no leitor e a coreografia em torno da roda de madeira e o coro de vozes a encherem o ar vão desmentir aqueles que me dizem que ele morreu.

Publicado por

Manuel Bastos

Um comentário a “O Ti Zé

  1. Manuel;
    Obrigado por teres lembrado o meu avo de uma maneira tao sensivel. O Ti Ze Secio ficara sempre vivo ma memoria de todos aqueles que o conheceram.

    Obrigado
    Rui Secio

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