Memorial dos combatentes do ultramar

Disseram-nos que tínhamos de ir combater. Porque era preciso ajudar os nossos irmãos de África. Era preciso vencer o mal. Era preciso acabar com o terrorismo.

Agora, folheada a História da frente para trás, todos temos uma opinião bem fundamentada sobre o assunto, mas um milhão de portugueses com vinte e poucos anos a quem mandaram combater, aceitaram combater, porque simplesmente acreditaram que era seu dever fazê-lo, dado que não desertaram, e este Portugal com dez milhões de habitantes, fez um esforço de guerra em África nove vezes superior ao que os Estados Unidos fizeram no Vietnam, com os seus duzentos e cinquenta milhões. Manteve uma guerra por mais de uma década, em três frentes simultâneas, a meio mundo de distância, consumindo, nesse esforço de guerra, 40% do orçamento de estado e com um relativo sucesso militar, o que só as grandes potências por vezes conseguiram.

Mas isso não se deveu nem aos estrategas, porque a guerrilha é a mais primária das guerras, nem aos políticos porque os meios que disponibilizaram eram insuficientes e obsoletos, nem aos diplomatas que não arranjaram soluções e tiveram uma década para o fazer. Isso deveu-se tão só a esses portugueses de vinte e poucos anos que não desertaram por terem acreditado que estava certo o que faziam.

Todos perdemos algo por lá, mesmo que a falta não se veja. De quase um milhão de portugueses que foram combater, perto de dez mil não regressaram, mais de cem mil não regressaram completamente, algo de si ficou lá, e um número ainda não determinado continua na guerra: sofrem do distúrbio psiquiátrico conhecido por PTSD, Distúrbio do Stress Pós-traumático.

Porém alguns ganharam algo também: aprendemos que a guerra nunca se faz só pelas razões que nos dizem; aprendemos que a vida é um privilégio, não um direito garantido; aprendemos que a guerra é o sítio onde é mais difícil encontrar heróis, troca-se apenas a vida de um soldado pela vida de outro como se troca um peão num jogo de xadrez; mas sobretudo aprendemos que quem nos dão como inimigo é demasiado parecido connosco, seja branco, preto ou amarelo, e que só por mero acaso nos encontrámos na guerra e não num bar a beber uns copos e a falar de futebol ou de mulheres, que é, afinal, o que todos os homens mais gostam de fazer.

Quando os governantes não põem fim às guerras, as guerras põem fim aos governantes e depois o fim da própria guerra impõe-se por si mesmo, porque nenhum fruto sobrevive muito tempo à morte da árvore. Nessa altura os soldados regressam sem honra nem dignidade e as populações ficam órfãs, abandonadas ao seu destino.
Mas vai ser preciso muito tempo para a história fazer justiça, porque a revolta das populações espoliadas dos seus bens e dos seus filhos a troco de nada, tende a culpar os últimos responsáveis, como se o dentista que extrai o dente podre fosse o culpado da falta de higiene dentária que não evitou a cárie.

E depois promove-se o silêncio, primeiro por pudor, porque ninguém gosta de dizer que matou um tipo com quem podia ter bebido uns copos, um tipo a quem também disseram que tinha de ir combater porque havia gente sua que precisava de ajuda; depois por estratégia, para que o manto silencioso do esquecimento cale o eco das guerras havidas para se permitir o alarde às guerras haver.

Não sei o que motivou os ex-combatentes da freguesia de Aguim a erigirem um memorial a si mesmos, mas desejo intensamente que seja a expressão de um sublime senso de humor, para que não caia no esquecimento uma guerra que poderia ter sido evitada, ou que pelo menos poderia ter sido terminada com honra e dignidade e para que não volte a acontecer que políticos corruptos, falsos diplomatas e estrategas trogloditas, convoquem o heroísmo genuíno dos vinte e poucos anos de um jovem, para acudir à sua incompetência inoperante e à sua cobarde estupidez.

Publicado por

Manuel Bastos

Um comentário a “Memorial dos combatentes do ultramar

  1. e agora, se calhar, vamos ter um presidente da república que não é mais do que um desertor,

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