O Ti Artur marinheiro

Impeçam um cavalo de galopar, cortem as asas a um pássaro ou fechem um leão numa jaula e compreenderão o que aconteceu quando o meu tio Artur deixou de sentir o salitre do mar e o balanço das ondas.

Com o tempo as suas memórias começaram a desprezar a verdade e quando a verdade deixou de ter importância, só o álcool se aproximou um pouco do efeito que o balanço do mar provoca num marinheiro.

Ensinou-me coisas que já esqueci: o que significa o halo em torno da lua, e quando a lua parece um barco a afundar-se, e quando as nuvens parecem bigornas de ferreiro e outras coisas que só os marujos, com saudades do balanço das ondas, perdem tempo a contar aos putos.

Aos moralistas que não faziam a menor ideia da falta que faz o galopar a um cavalo, o voar a um pássaro ou um copo de vinho a um marujo preso ao chão, depois de se ter habituado à liberdade do espaço sem limites do oceano, ele respondia com sarcasmo:

Desgraçados portugueses, filhos de um país vinícola, se haviam de se embebedar todos os dias, ainda censuram aqueles que cumprem patrioticamente com o seu dever!

Contou-me um homem, que encontrei em África, que um dia, quando marinheiro e num bar dum porto não sei de que cidade, se vira rodeado de rufias dispostos a darem cabo dele e que um marinheiro de corpo franzino o defendera, depois, sozinho, esvaziou o bar a murro. Que ficaram amigos, que se chamava Artur, que era o tipo mais duro e mais leal que conhecera, que era de Aguim, que gostava de saber como ele estava.

Deixei, eu também, que a memória desprezasse a verdade. Não lhe disse que o marinheiro de corpo franzino e de nervos de aço já não enfrentava rufias sozinho para ajudar marinheiros em apuros e que o álcool era a única coisa que o fazia esquecer do balanço do mar.

Um homem deve ser lembrado no seu melhor.

Publicado por

Manuel Bastos