Machado de Castro e Aguim

Machado de Castro: Estátua de D. José, na Praça do Comércio, em Lisboa
Machado de Castro: Estátua de D. José, na Praça do Comércio, em Lisboa

É reconhecida a importância do relacionamento entre o escultor Joaquim Machado de Castro e algumas famílias de Aguim, nomeadamente os Castilhos e os Cerveiras. Por isso, e apesar de aquele escultor ter nascido em Coimbra (não é, pois, natural de Aguim), cabe aqui uma referência à sua figura, que atingiu projecção nacional durante grande parte do séc. XVIII e ainda em inícios do século passado.

O presente trabalho, além de pretender retratar os momentos mais importantes da relação entre Machado de Castro e Aguim, pretende dar a conhecer, se bem que de forma sucinta e breve, os motivos para fama e glória deste artista.

Assim, começaremos por traçar os passos mais importantes daquele que foi, a certa altura, nomeado escultor oficial da Coroa Portuguesa. Seguiremos com os destaques mais importantes na sua obra, tanto sob a forma de escultura, como nas letras, em que Machado de Castro também atingiu projecção assinalável.

Nos dois últimos capítulos referiremos a relação do artista com aquelas famílias de Aguim, tanto em termos de parentesco, como de realização de obras dedicadas a alguns dos seus elementos.

A vida

Machado de Castro nasceu em Coimbra, a 19 de Junho de 1731, vindo a ser baptizado na freguesia da Sé, nesta cidade, apenas oito dias depois. Era filho de Manuel Machado Teixeira, escultor e organeiro de Braga, e de D. Teresa Angélica de Castro.

O pai viria a enviuvar e casar novamente, agora com D. Josefa Cerveira.

Com 15 anos, partiu para Lisboa (em 1746 ou 1747), onde aprenderia escultura com José de Almeida.

Entre 1756 e 1770 trabalhou com o mestre italiano Alexandre Giusti nas obras de Mafra. Termina estas funções quando vencer um concurso para a estátua equestre de D. José I, na Praça do Comércio de Lisboa.

Entretanto, em 1758 publicou um elogio ao pintor Francisco Vieira Lusitano, ou, conforme lhe chamava, ao Apeles Lusitano.

Por ocasião da eleição de Fr. António das Chagas para provincial da Arrábida, elaborou um Tríduo métrico, em 1763.

Cerca de doze anos depois, a 6 de Junho de 1775, viria a receber a mercê do hábito da Ordem de Cristo, com uma tença efectiva anual de 30 mil réis.

A partir desta altura, começa a realizar várias obras escritas, sejam elas de poesia, sejam de crítica artística; sobre este assunto falaremos mais em pormenor num próximo capítulo.

O seu mérito permitiu que em 1782 viesse a ser nomeado escultor oficial do Reino, incumbindo-se de todos os trabalhos de escultura nas obras reais.

Vinte anos depois, ainda esta situação se mantinha, com a curiosidade de Machado de Castro receber um ordenado anual de um conto de réis.

Pelo meio, em 19 de Janeiro de 1800, participou na Igreja da Encarnação no baptizado de António Feliciano de Castilho, filho do médico José Feliciano de Castilho.

Já mais próximo do final da sua vida, o escultor viria a ser acometido de doença grave, corria o ano de 1814. A assistência do Dr. José Feliciano de Castilho permitiu uma óptima recuperação, o que leva Machado de Castro a dedicar-lhe um soneto. Destaque-se a existência de uma obra, de autoria de Júlio Castilho, cujo título é Memórias de Castilho, muito importante para o estudo das relações entre o artista e aquela família.

Ainda no ano de 1814, Machado de Castro toma-se sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa; em carta datada de 27 de Julho desse ano, o artista agradece aquela distinção.

Dois anos depois, receberia uma medalha de ouro como prémio por um busto em mármore representando o Duque de Lafões.

Viria a falecer no dia 17 de Novembro de 1822, contando 91 anos de idade.

Tal como seu pai, também Machado de Castro foi casado três vezes, embora apenas tenha deixado descendência da última, mais propriamente quatro filhos.

Os Escritos

Acima de tudo, devemos considerar Machado de Castro como um autodidacta, já que muito do que aprendeu se deve a ele próprio, embora tenha frequentado o trabalho de José de Almeida para aperfeiçoar os seus dotes.

Sem ter hipótese de sair do país para estudar e aumentar a sua formação artística, o artista lamenta as suas dificuldades e limitações, desabafando: “Que posso eu, pois, saber sem ter saído da Pátria, faltando-me estes proveitosos estudos e até aqueles que os artistas das outras nações acham em seus próprios lares?”

Apesar disso, escrevia bastante nos tempos livres, pelo que nos deixou uma obra escrita muito importante. Os seus escritos podem mesmo dividir-se em duas partes: a obra literária, com destaque para a Poesia; e a critica artística, sector em que se destacou, tanto mais que foi dos primeiros a teorizar sobre vários temas, sendo mesmo o primeiro a entrar em assuntos até então nunca debatidos.

A) A OBRA LITERÁRIA

Deixaremos de fora, neste capítulo, as referências a obras que se relacionem, directa ou indirectamente, com as gentes de Aguim, sobretudo com os Castilhos. Quanto aos restantes escritos, vamos tentar fazer-lhes uma brevíssima referência, sobretudo aos seus trabalhos mais representativos.

Assim, em 1758 publica um soneto intitulado Elogio ao senhor Francisco Vieira Lusitano, importante pintor português do séc. XVIII, o qual Machado de Castro muito admirava e a quem chamava Apeles Lusitano. Seguiu-se, ainda, uma outra obra em honra daquele artista, uma Glosa do soneto em applauso ao senhor Francisco Vieira Lusitano.

Cinco anos depois, o escultor publica um Triduo métrico na eleição, que a província da Arrábida fez, para seu ministro provincial, na religiosa pessoa do reverendíssimo senhor Fr. António das Chagas Lancastro. Tem esta designação por se tratar de um conjunto de três grupos de poemas, para serem ditos em cada uma das três noites em que os festejos decorreram.

Só sete anos depois, em 1770, portanto, Machado de Castro publicou uma nova obra, um Soneto Ao Ex.mo e R.mo Snr.o D. Fr. Manoel do Cenaculo na sua promoção ao bispado de Beja.

Na ocasião da inauguração da estátua equestre de D. José, na Praça do Comércio, Machado de Castro apresentou mais algumas das suas criações poéticas. Foram dois sonetos, dedicados “Ao felicissimo cumpre-annos de S. Magestade, conduzindo o povo de Lisboa neste dia huma das pedras para o pedestal da sua estatua equestre”, e mais uma ode “Ao rey fidelissimo Dom José I. Nosso senhor, collocando-se a sua colossal estatua equestre na Praça do Commercio”.

Mais dois anos de interrupção e o artista apresenta ao público mais uma ode “Na feliz acçlamação dos fidelissimos reis D. Maria I e D. Pedro III nossos senhores”.

Em Agosto de 1789, Machado de Castro publicou uma “Ode saphica pelo restabelecimento da saude preciosa do serenissimo senhor D. João principe do Brasil”.

Mais tarde, a propósito da grave doença que o atingiu, o artista compôs um soneto em homenagem ao seu médico, José Feliciano de Castilho, que será abordado em próximo capitulo.

B) CRÍTICA ARTÍSTICA

Em parte porque a estátua equestre de D. José I se tornou uma espécie de “ex-libris” de Machado de Castro, tão grande foi a projecção que permitiu ao artista, os seus escritos relativos a esta obra contam-se entre os mais importantes documentos de crítica artística. E conhecemos vários escritos sobre esse assunto, sejam memórias sobre a sua concepção, estudos, artigos para publicações periódicas, opiniões de outros artistas e críticos de Arte, etc…

Em 1780, Machado de Castro publicou uma “Carta que hum affeiçoado ás Artes do Desenho escreveo a hum alumno da Escultura, para o animar á perseverança no seu estudo: mostrando-lhe as honras, e utilidades, que os Potentados, as Pessoas de juizo, civilidade, e instrucção, tem feito, e fazem aos Professores ingenuos das Bellas Artes, Filhas do Desenho”. Alguns anos mais tarde, em 1817, surgiria uma nova edição deste documento, acrescentado com um relativamente grande aditamento complementar.

Na véspera do Natal de 1787, Machado de Castro recitou no Castelo de S. Jorge, e na presença de toda a Corte, um “Discurso sobre as utilidades do Desenho, dedicado á Rainha N. Senhora”. Conhecemos a sua segunda impressão, já com as devidas correcções, do ano de 1818.

Interessante, igualmente, é a “Explicação dos assuntos que se expõem nos três diversos desenhos de uma estatua da Rainha N. Senhora (D: Maria Ia.)”, espécie de memória descritiva de uma estátua da Rainha, lembrando as esculturas da deusa Atena da Grécia Clássica. Este documento é datado de 1799.

Entretanto, o ano de 1805 trouxera a público uma das mais importantes obras escritas por Machado de Castro, a “Analyse grafic’orthodoxa, e demonstrativa, de que sem escrupulo do menor erro Theologico, a Escultura, e Pintura podem, ao representar o Sagrado Mysterio da Encarnação, figurar varios Anjos: Dedicada ao Principe Regente Nosso Senhor”.

Embora voltemos a referir esta obra, em 1811 Machado de Castro escreveu um “Documento relativo a um genio alado, modelado por Antonio Feliciano de Castilho em Dezembro de 1811.

Sendo provavelmente datável do ano de 1878 (pois trata-se de um documento relacionado a atribuição do Hábito da Ordem de Cristo a Machado de Castro, o que sucedeu em 14 de Outubro daquele ano), temos conhecimento de um “Requerimento” enviado pelo escultor a D. José; o seu grande interesse reside no facto de o artista aí fazer a descrição da sua genealogia até aos avós, tanto paternos como maternos.

Já próximo do final da sua vida, corria o ano de 1819, o artista teve ainda tempo para projectar uma estátua de D. João VI para o Rio de Janeiro e que levou Machado de Castro a elaborar uma dedicatória: “A El Rei O- João VI, Nosso senhor, offerece o amor, e a lealdade, o incluso projecto para se lhe erigir huma estatua pedestre, na presente Corte do Rio de Janeiro”. Este texto completa-se com um “Epilogo declaratorio dos syrnbolos allergoricos, com que se adorna o monumento, que se intenta erigir a El Rei O. João VI Nosso senhor em a sua nova Corte do Rio de Janeiro”

Ainda devemos destacar a elaboração de cartas, dirigidas às mais variadas personalidades, normalmente versando temas ligados à crítica artística. Conhecemos, por exemplo, dez cartas a Frei Manuel do Cenáculo, cinco cartas a João Baptista de Castro, uma a Fr. Vicente Salgado, outra a Francisco Xavier de Reis, também a João Lourenço de Andrade, a Sebastião Francisco de Mendo Trigoso. Outras cartas que Machado de Castro enviou destinaram-se, por exemplo, a José Bonifácio de Andrade e Silva, ao Secretário da Academia Real das Ciências e aos Vereadores da Câmara de Coimbra.

Além disso, conhecem-se várias cartas escritas por Machado de Castro, mas com destinatário indeterminado.

Houve ainda vários outros escritos do artista, mas, se por um lado são obras de interesse inferior, por outro também não têm grande importância para o presente estudo e muito menos para o âmbito desta publicação.

A Escultura

Machado de Castro: Figuras de presépio
Machado de Castro: Figuras de presépio

Considerando a temática desta publicação, interessada essencialmente em temas locais ou regionais, não fará grande sentido entrarmos em demasiados pormenores sobre a obra do escultor Machado de Castro. Todavia, não queremos deixar de destacar alguns dos pontos mais importantes da sua carreira, para que possamos compreender melhor a sua projecção a nível nacional e, por consequência, a importância da sua presença nas nossas terras, mais propriamente em Aguim.

De tal forma foi valiosa a obra deixada por Machado de Castro, que influenciou grande parte dos artistas da sua época. Por exemplo considera-se que as obras dos jardins do Palácio de Queluz e da quinta do Marquês de Pombal em Oeiras, realizadas juntamente com Silvestre de Faria Lobo, terão influenciado as esculturas de Fr. José Vilaça, um religioso cuja obra preenche boa parte dos edifícios religiosos portugueses.

Importante foi, necessariamente, a sua colaboração com o mestre italiano Alexandre Giusti nas obras de Mafra. O escultor foi um dos vários artistas de grande projecção que aí trabalharam (um deles foi o pintor Vieira Lusitano). Depois de ter ido para Lisboa em 1746 ou 1747, Machado de Castro colaboraria naquelas obras entre 1756 e 1770, já que nesta data ele foi escolhida para realizar a sua obra-prima – a estátua equestre da Praça do Comércio.

Com efeito, o concurso realizado entre 1770 e 1771, que opôs Machado de Castro ao escultor italiano Andréa Imbrol, deu ao artista português a possibilidade de realizar um dos melhores trabalhos escultóricos do nosso país, sendo mesmo considerado um dos símbolos da cidade de Lisboa, visto localizar-se naquela que podemos apelidar de sala de visitas da nossa capital.

O monumento já tinha sido projectado por Eugénio dos Santos, na linha do sentimento geral na Europa de glorificação aos governantes das mais diversas nações.

Curioso será o facto de Machado de Castro não querer submeter-se a esses planos, algo ultrapassados segundo o artista. De qualquer maneira, conseguiu introduzir alguns melhoramentos, com o intuito de melhorar o modelo, podendo-se destacar o caso dos grupos laterais, representando O Triunfo e A Fama. Ficaram, assim, a mostrar mais elegância e naturalidade, mas sem diminuir o seu aspecto solene e a sua harmonia. Foi igualmente alterado o grupo principal, onde um leão foi substituído pelas serpentes, que aparecem calcadas pelo cavalo.

Outra das dificuldades de que Machado de Castro se queixou nos seus escritos foi a escassez de tempo para realizar esta obra. Será impressionante o facto de que o modelo em gesso foi feito em cinco meses, dispondo apenas de oito dias para moldar o cavalo!

Dificuldade acrescida terá sido a impossibilidade que o artista sentiu de contactar directamente com o monarca; mas a categoria do escultor não se intimidou com o facto, vencendo essas dificuldades representando o rei com um capacete de plumas na cabeça.

Estando numa fase transitória entre o barroco tradicional, o rococó e o neoclassicismo, Machado de Castro mostra já ideias muito influenciadas por esta última corrente artística, com especial destaque para a arquitectura, tendo defendido o estudo de Vitrúvio e Palladio, mas curiosamente condenando Miguel Angelo, e também Bemini.

Por outro lado, a criatividade que o artista demonstra nas peças escultóricas secundárias da sua obra-prima (a Estátua Equestre, onde representa figuras como a Generosidade Régia, o Amor da Virtude, o Governo da República, o Comércio, a Arquitectura ou a Providência Humana), é elevada à máxima expressividade na elaboração de presépios de barro. Aliás, apesar da imensa projecção da obra da Praça do Comércio, Machado de Castro é essencialmente considerado um barrista, conseguindo modelar figuras com um virtuosismo difícil de ultrapassar.

Sendo originária da camada popular, o escultor não hesita em representar esse mesmo povo, em atitudes e manifestações de gosto bem naturalista, em festas, arraiais ou romarias; não faltam aí os beberrões e os pedintes, as fiandeiras e as vendedeiras de castanhas, camponeses com oferendas ou cegos cantores. O presépio da Basílica da Estrela é, assim o cremos, a sua obra mais conseguida.

A relação com Aguim

Quando chegamos a Aguim, idos da Estrada Nacional N.º 1, uma das primeiras coisas que nos chama a atenção é uma rua, a primeira à direita, onde uma placa incrustada numa das casas indica estarmos à entrada da Rua Machado de Castro (Escultor). Muito perto desta rua, e também da casa dos Cerveiras, outra placa noutra casa diz-nos que estamos no Largo Machado de Castro. Não é por acaso que tal se verifica.

Conforme veremos, Machado de Castro teve uma relação muito próxima, mesmo íntima ou familiar, com as gentes de Aguim.

Joaquim Machado de Castro era filho do primeiro casamento de Manuel Machado Teixeira de Miranda, organeiro entre outras ocupações, natural de Braga e filho de Gonçalo Teixeira e Mariana Micaela de Miranda. Manuel Machado foi casado com Teresa Angélica de Castro, de Coimbra, de quem ficou viúvo, tendo-o ficado também de Teresa Cerveira, da Mealhada; casou depois com Josefa Luiza Cerveira, de Aguim, filha de Francisco Cerveira e de Maria Cerveira. Deste terceiro casamento nasceu António Xavier Machado Cerveira, cujos padrinhos de baptizado foram Frei Manuel tio materno, e a Senhora do Ó.

Por seu turno, Joaquim Machado de Castro, o escultor, seria casado sucessivamente com Izidora Teresa de Jesus e Silva, Rosa Maria Vieira e Ana Bárbara de Sousa. Esta e António Xavier Machado Cerveira (“meio irmão” do escultor) foram padrinhos do Dr. António Xavier Cerveira e Sousa. Na realidade, estes dois António Xavier eram primos em segundo grau, pois o casal Francisco e Maria Cerveira (sogros do terceiro casamento do pai do escultor) tiveram outro filho, chamado Francisco Xavier Cerveira, de cujo casamento com Luiza Antónia da Conceição nasceu o Sr. José Xavier Cerveira. Este casou com Rosa Joaquina de Sousa Correia (filha de João de Sousa Correia e Isabel Maria das Neves) originando, entre muitos outros descendentes, o referido António Xavier Cerveira e Sousa.

Por outro lado, o bisavô materno deste, Domingos Francisco Ruivo, foi casado em segundas núpcias com Maria Comes; deste casamento nasceu Maria Luiza Comes, que casou com José Barreto de Castilho; em cerimónia presidida pelo Padre Luís Barreto de Castilho; Maria Luiza e José Barreto foram pais de José Feliciano de Castilho, médico já atrás citado de Machado de Castro.

José Feliciano nasceu em Aguim em 21 de Abril de 1766, vindo a falecer em 6 de Março de 1827. Casou cerca de 1798 e desse casamento nasceram Augusto Frederico e António Feliciano de Castilho.

Este, que viria a tornar-se escritor, nascido em Janeiro de 1800, foi baptizado no dia 19 daquele mês e ano. O seu padrinho era o Dr. Francisco Tavares, mas Machado de Castro “tocou por ele”, ou seja, quase podemos dizer que o escultor foi como que um padrinho do futuro escritor, de quem, aliás, viria mesmo a ser admirador.

Mas queremos ainda referir que um dos muitos irmãos do Dr. António Xavier Cerveira e Sousa foi D. José Xavier, sexto filho de José Xavier Cerveira e de Rosa Joaquina de Sousa Correia, que viria a desempenhar altos cargos na hierarquia episcopal do nosso pais, tal como fica explicado noutro local desta publicação.

Temos, assim, explicada a relação entre Machado de Castro e as famílias Castilho e Cerveira de Aguim. Como vemos, uma relação muito próxima, mesmo com laços familiares, embora por vezes de forma indirecta. E esta relação será interessante para referirmos algumas das obras literárias do escultor cujo tema foram pessoas destas famílias, como veremos já de seguida.

AGUIM E A OBRA LITERÁRIA DE MACHADO DE CASTRO

O devorador Tempo e o Morbo hirsuto,
Contra Castilho audazes se conspirão,
Para que as suas luzes não confirão
A Machado o clarão grato e absoluto

Mas o Elyseo Esculapio, sempre astuto,
As influencias próvidas que inspirão
Dispoem de modo tal, que emfim profirão
Em Decreto feliz, firme estatuto

Não pára aqui do sabio o heroico asylo;
Elle quero cliente seu salva-lo,
E ao grão de robutez maior subi-lo;

Quer na posse do bem total firma-lo,
Seu espírito á gloria conduzi-lo.
E o material, em bronze transforma-lo.

São vozes da Gratidão, e da verdade.

O soneto que acabamos de reproduzir não foi feito por acaso; tem, isso sim, objectivo muito concreto, e que passamos a explicar: como já foi referido, em 1814 o escultor Machado de Castro sofreu uma doença, que presumimos tenha atingido certa gravidade. Por tal motivo, entendeu por bem dedicar a quem o tinha salvo de tanto sofrimento o referido soneto. Ora o seu “salvador” foi o Dr. José Feliciano de Castilho, na altura um conceituado médico, Professor catedrático de Medicina na Universidade de Lisboa, membro da Ordem de Cristo e da Real Academia das Ciências de Lisboa.

Este soneto e outros escritos de Machado de Castro aparecem referidos numa interessante obra de Júlio Castilho, intitulada Memórias de Castilho. A certa altura desta obra, o seu autor destaca as relações de amizade entre o escultor, o médico e o filho deste, num excerto que passamos a reproduzir (e que foi publicado na Revista contemporanea de Portugal e Brazil, vol. 10, p. 308)

“Por este mesmo tempo (1811) iam de vez em quando os irmãos Castilhos á officina do amigo de seu pae, o celebre Machado de Castro, então professor proprietario do laboratorio e aula official de escultura dependente da repartição das obras publicas. Era situada essa officina onde é hoje o Hotel de Bragança, no fim da rua do Thesoiro velho.

A parte do sul dessa pinha de casebres, verdadeira cour des miracles, de que hoje não ha indicio por aquelle bairro elegante e opulento, campeava, arrimada talvez ainda a algum lanço das paredes ducaes, a vasta oflicina, onde o Canova portuguez, já então no occaso da vida, passava com os modelos da antiguidade os seus ultimos dias, tão cheios de recordações da sua gloria.

A essa officina, ou laboratorio, costurnavam de longe em longe concorrer os nossos estudantes, como a um templo e a um museu. Ahi, na convivencia com as obras dos mestres, na presença veneravel do grave escultor, e genio accessivel e amenissimo, até para creanças, tomaram elles certo gosto pela arte classica; aprenderam, sem saber que aprendiam, a theoria dos processos; trataram de perto as grandes figuras mythologicas, que elles ainda mal conheciam, mas que os saudavam cheios de sorrisos; eram para ellas uns amiguinhos novos, a quem se estavam já descerrando os aditos doirados do latim.

Ficam no mesmo sitio, no andar de cima, a residencia de Machado de Castro, albergue sereno e inspirativo, meio officina meio palacio, corrido de uma larga varanda sobre o mar, por onde a vista com delicias se espraiava. Esse santuario, a penna feiticeira do nosso insigne estylista o sr. Latino Coelho que o desenhe, com aquella magia, que faz dos seus escriptos primores de arte.

A casa -diz elle- tinha o que quer que fosse de solemne e antiquario. Era uma habitação do antigo regimen, decorada de panos de Arraz, onde as imagens dos heroes da Iliada pareciam, á luz indecisa dos aposentos, saltar da tela para vir terminar no meio d’elles as suas homericas pelejas. Ali leveram muitas vezes o futuro poeta, como se fôra uma gloria nascente, que ia receber a benção de uma gloria moribunda. Estava o decrepito escultor no seu gabinete, cercado de livros e de gravuras, ora desenhando, ora escrevendo, ora deixando aquelle pequeno sanctuario para ir visitar a aula e a officina de escultura, que tinha estabelecida no andar terreo da propria habitação”

Serve este texto para situarmos um dos momentos mais importantes da relação entre Machado de Castro e António Feliciano de Castilho: numa destas visitas, aquele que viria a distinguir-se nas letras, ainda criança com 11 ou 12 anos de idade, apresentou ao escultor urna pequena figura alada, com cerca de 30 centímetros de altura, modelada em cera vermelha. O entusiasmo do artista perante aquela pequena obra foi imenso, pois além da sua perfeição, acresce que o seu autor era uma criança cega. Tamanho entusiasmo levou Machado de Castro a escrever um:

DOCUMENTO RELATIVO A UM GENIO ALADO MODELADO POR ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO EM DEZEMBRO DE 1811

Neste documento, Machado de Castro, motivado pelo caso único que acima referimos, elaborou os seguintes:

“DESEJOS

Primeiro

Que Deus fosse servido dar ao dito menino prompta e firme saude, dando-lhe a sua perfeita vista, etc.

Segundo

Que o mesmo Senhor dilatasse mais ao, dito Machado ao menos dez anos de vida sadia.

Terceiro

Que o principe regente nosso senhor ordenasse ao pae do dito menino que o entregasse ao dito Machado; e a este que fosse cultivando este singular pimpolho, segundo as luzes que tem na escultura adquirido; mandando sua alteza apromptar todos os meios que o dito professor julgasse convenientes a preparar um prodigio.

E como (por desgraça e labéo da nossa nação) as artes n’este reino se podem chamar beccos sem saida, desejaria mais.

Quarto

Que sua alteza real mandasse matricular o dito menino em o colegio dos nobres e fortificação, para alcançar por este modo augmentos e postos, etc,, etc.

E que no tempo d’estes estudos os lentes d’aquellas aulas, com este da de escultura, combinassem e regulassem as aplica çies de um tão distinto alumno,

Eis aqui como se podem formar prodigios, e utilisar-se nação de genios extraordinarios.

A respeitavel antiguidade é tão celebre pelos Themistocles, Lycurgos, Socrates, e Avicennas, como pelos Apelies, Phidias, Diocenos, e Folicletos.

Lisboa 7 de Dezembro de 1811

Joaquim Machado de Castro”‘

Curioso será verificar que o escultor, acompanhou o texto reproduzido da seguinte nota:

“Socrates primeiro foi escultor que philosopho, e as meditações, a que o conduzia a escultura, o entranharam na philosophía”.

Os pedidos de Machado de Castro terão sidos ouvidos pelos governantes, pois em 1816 Castilho dedica o seguinte soneto ao se. Joaquim Machado de Castro, escultor da estatua equestre do Sr. Rei D. José I, recebendo no anno corrente de 1816, por Ordem do Principe R. N. S. uma gratificação”:

Não, não podia, é inclito Mathado,
Da Lusitania adôrno esclarecido,
Teu grão saber, teu mérito subido
Não ser, como devia, premiado:

João, de Cezar bem fiel Traslado,
Do Imperio de Minerva amparo fido,
Mostrar-se de teu merito esquecido,
Não, não podia, é inclito Machado:

Mas inda que o Regente aos Lusos caro
Não fira em teu abôno tão benino,
Nunca o fado comtigo fôra avaro:

Que a Régia Estatua, que te fez Divino,
Alçada aos Astros, Astro novo e raro,
Te alcançára dos Céos o premio dino.

BIBLIOGIAFIA

Para obter mais informação geral sobre o escultor Machado de Castro, será interessante consultar as seguintes obras:

HISTORIA DA ARTE EM PORTUGAL
Vol. 9 – “Do Barroco ao Rococó”
Dir. Nelson Correia Borges
Publicações Alfa, Lisboa, 1987

JOAQUIM MACHADO DE CASTRO, ESCULTOR CONIMBRICENSE
Henrique de Campos Ferreira Lima
2a. edição, Coimbra, 1989
Da série “Subsídios para a História da Arte Portuguesa – XVI”

MACHADO DE CASTRO
Manuel Mendes
Biblioteca Cosmos
5a. Secção – Bibliografias, Nº2
Edições Cosmos, Lisboa, 1942

Existem algumas referências interessantes na obra:

O couto de Aguim. Subsídios para a sua História
José Rodrigues P. Rosmaninho
CISIAL, Anadia, 1959

Sobre a presença de Machado de Castra em Aguim, é muito importante a consulta de:

“Machado de Castro em Aguim. Suas relações de família com gente dali: Castilhos e Cerveiras”
Soares da Graça
in Arquivo do Distrito de Aveiro
Vol. VI, N 23, Aveiro, Setembro1940. P. 161-176,

Rui Godinho, in Aqua Nativa n.º6, Julho 96

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